domingo, 3 de julho de 2016

Psicanálise e Psicologia II






         Psicanálise e Psicologia II 


                 eliane colchete


     

     Os trechos revisados estão isentos de erros ortográficos, qualquer discrepância da regra culta da língua deve ser atribuída a intervenção hackerista na internet. Escolhi o tamanho "normal" da letra, sem variação, porém se constata alteração de origem inexplicada na apresentação visual do blog.  
      ( espaço do blog reutilizado, texto elaborado entre 2017, 2018, postado em 2019)


   Conteúdo:
   
1)    Instintos e Cultura
II)   Os Instintos e As Perversões
III )
     a)  História da Psicopatologia e Explicação Psicanalítica        b) A Teoria da Cultura 

IV)   Lacan, Psicologia e psicanálise I
V)    Lacan, Psicologia e psicanálise II
VI)   Antropologia em Psicanálise 



VII) Antropologia e Ciência 



1)   Instintos e Cultura


           Ao refletir sobre a guerra e a civilização, Freud não faz qualquer consideração sobre os motivos históricos. Opera redução de conflitos sociais a conflitos de personalidade, dos problemas sociais ao eu que com eles deve lidar. O texto sobre “psicanálise dos tempos neuróticos” é escrito pungente, compreensivelmente, devido ao aspecto bárbaro da guerra mundial. Porém ocorre aí contradição expressa. 
         O capítulo 11 estabelece uma relação determinista entre instintos e cultura. Esta não é independente dos instintos, mas decorre como repressão deles, o que apenas implica um resultado altamente negativo na consecução das personalidades.

            O recalque dos instintos sexuais produz “as diversas formas de neuroses” e os demais recalcamentos, se não determinam como aqueles a patologia propriamente, “promovem deformações do caráter que, através dos impulsos coagidos, se mostram um dia tal qual são, libertando-se assim da tensão a longo tempo sofrida”. 
       A cultura “é construída sobre uma tal hipocrisia”, como seguirem-se regras opostas “às próprias inclinações”. Porém logo a seguir, nesse mesmo trecho, Freud aduz que “assim sendo, existe muito maior número de hipócritas culturais, que de indivíduos verdadeiramente cultos”. (p. 39) 
          Ora, a contradição entre a cultura em si definida como construção de hipocrisia, e o verdadeiramente culto como o contrário do hipócrita cultural, nem se reduz a isso que poderia esgotar-se talvez numa questão terminológica. O capítulo 12 inverte factualmente a premissa. Agora Freud considera, a propósito do comportamento dos inimigos de guerra, que “não se baixaram a tanto quanto imaginamos, porque não se elevaram a tanto quanto pensamos”. Assim, nada fazem os mesmos inimigos, que permitirem-se a “satisfação dos [seus] impulsos recalcados”. (p. 40) 

                A cultura é ao mesmo tempo a culpada e a agredida, se os instintos por ela recalcados são a causa da guerra. Além disso, Freud inicia o arrazoado com uma consideração que se não for apenas irônica, referenciando as ingenuidade mais vãs sobre a história, será nada além de risível. Pois afiança que não se poderia antecipar nada como a Grande Guerra, por tratarem-se os beligerantes dos “grandes povos de raças brancas”, até aí “chefes da espécie humana” só preocupados “em cuidar dos interesses de toda a humanidade” (p. 22, 23) Se houve litígios antes, tudo era muito amável entre as partes conflitantes, e respeitavam-se convenções rigorosas sobre a inviolabilidade da população civil, mulheres, crianças, enfermos, etc. O que surpreendeu na Guerra de 1914, de que somente se prognosticava que seria ainda muito mais polida devido aos progressos científicos acumulados, foi, portanto, a brutalidade mais radical. Não é a guerra em si que Freud pretende explicar, mas o motivo pelo qual a guerra se mostrou tão diferente dos prognósticos.

            A explicação é a irrupção do que jaz no interior. A educação não o suprime, apenas o recalca, mas permanece lá, podendo sempre retornar a qualquer momento. Freud não é portanto rousseauísta, para ele o que está na origem não se define como bondosa compaixão. É bem aproximável a Schopenhauer como filósofo do egoísmo universal.  Mas a educação pode encontrar meios de um desenvolvimento corrente com o impulso interno à socialização. O que ocorreu na Guerra de 14, portanto, deve ter sido ao contrário, uma subversão da cultura, desrepressão em nível primário dos instintos. Porém, a cultura em si é julgada como inimiga do indivíduo (p. 92), devendo defender-se contra ele. A defesa é a sujeição das multidões às minorias líderes, que mantem a repressão dos instintos destrutivos (p. 95). São estes poucos que garantem a estabilidade da civilização. Mas logo em seguida, Freud mais uma vez inverte a correlação, para conjecturar que os impulsos destrutivos, que se traduzem no ódio ao trabalho e livre curso das paixões dissipativas, já pode ser consequência e não causa da repressão como se mostra de ordinário. Gerações criadas com amor, nutridas com o melhor letramento que as estimularia ao pensamento são, compreendendo os benefícios da civilização que já experimentam, seriam afeitas ao trabalho e regrariam a liberação dos impulsos conservativos, ao invés de destrutivos.

             Assim, por um lado, o argumento ressoa o positivismo spenceriano. A civilização eliminará a guerra e liberará a subjetividade. Por outro lado, foi a própria civilização defeituosa que condicionou indivíduos instáveis e maus. Ao contrário de Spencer, cujo critério psicossocial evolutivo é a organização industrial ou o progresso (“modernidade”),  em Freud não há critério pelo qual se transita de um estado de coisas a outro, senão a qualidade dos líderes. Porém, como vimos, a necessidade da oligarquia se deve aos indivíduos serem na maioria naturalmente maus, ao mesmo tempo “explicando-se” que eles se tornaram maus pelas más lideranças (p.97). O que Freud almeja, contudo, é reduzir ao mínimo o número dos indivíduos que permanecem “associais” ou sujeitos aos seus instintos (p. 99)

          Os instintos primordiais segundo Freud, foram animais, incesto, canibalismo, homicídio. (p. 100) A renúncia ao instinto, proibição e privação dele, foram os fatores da hominização. A formação do superego, conforme Freud não deve ser associado à guerra, mas sim, inversamente, à evolução psíquica. Na história da hominização houve o momento em que a repressão externa sobre grupos a partir de classes dominantes ou líderes específicos, se interiorizou, passando a constituir mandamentos internos. Aqui a inversão que podemos constatar, entre Freud e Rousseau, é patente, pois Rousseau já conceituava a mesma interiorização, porém o que a seu ver era uma estação na escalada da degradação do indivíduo originariamente bom pela sociedade definida como dominação, antes que o contrato social restaurasse a liberdade subjetiva natural.

            Como Freud define a ontogênse por um aparato formativo do ego inteiramente desconhecido até o nascimento da psicopatologia, já vimos que na ontogênese a criança repete a história evolutiva (filogênese). A neurose é o caso do fracasso da interiozação, que não se completa. Na pessoa comum, o super-ego do atual estágio civilizado já alcançou a interiorização da repulsa (proibição) aos impulsos mais arcaicos já definidos, mas requer-se maior evolução ao atingimento de um superego repressor de instintos ainda destrutivos, porém não tão arcaicos como o canibalismo.

        Freud exemplifica com o homicídio, que já é proibido, mas só externamente para indivíduos que ainda sentem o impulso, havendo muitos outros instintos egoístas ainda de livre curso, com o agravante de que vários só são reprimidos por coerção externa, pelo temos da punição legal. 

             Freud aborda a questão social concordando com o que vemos em Maslow, porém de modo mais radical. As classes oprimidas são desreprimidas, pela sua hostilidade à civilização para elas cruel. Odiando-a, a ação dessas classes só poderia resultar consoante o objetivo, na iconoclastia, a tentativa de destruir a cultura. A cultura, enquanto abrangendo um nível de crueldade de classe, também não abriga um superego desenvolvido, não tendo muitas chances de se conservar contrariando os grupos revoltados, explorados pela opressão que transita na própria civilização. Já os ideias da cultura, traduzindo-se na arte, sendo de natureza narcisista porém até um nível saudável de realização, reforçam a coesão social, contrabalançando a hostilidade dos grupos oprimidos e dirigindo-se para fora, como fator competitivo,  mas apenas pela mais elevada qualidade do ideal, entre as culturas. Tornando-se fator de guerra entre sociedades, a arte é ainda assim fator de conservação das sociedades singulares, enquanto um fator narcisista. 

              Na sua “Carta a Einstein”, Freud traça uma história desde o domínio pela força bruta até o Estado de direito civis. Mas a história é apenas a variação da constante da violência. A força primitiva era individual, o direito do mais forte, o Direito em sentido jurídico é a força que se formou na união dos fracos – nisso Freud repetindo o que pensava Nietzsche, porém para, inversamente a ele, fazer o elogio do jurídico. A força ou poder sendo como sempre o mesmo que violência, aqui temos a mesma definição do Estado que já vimos em Weber. O Estado é a prerrogativa legal do uso da força, logo, exerce violência justa para impedir a violência injusta.  

              A tendência de Eros a unir e agregar em unidades sempre maiores é aqui, conforme Freud, a base duradoura da comunidade. Se antes vimos que o superego interiorizado era o sentimento de aprovação à regra sobre o instinto, e que o laço comunitário liberava porém pela “arte” – que, como se sabe, é um modo de “sublimação” – o eu narcísico, aqui, pelo contrário, a comunidade é o expediente dos muitos contra o um, apropriação da violência. O que resulta do compromisso estratégico é a união pelos sentimentos comunitários e vínculos afetivos.

           Na tese da hominização por repressão aos instintos, o conceito freudiano da animalidade se prolonga aos instintos humanos a serem primariamente, na filogênese, reprimidos, e assim como vimos ele considera o incesto. Na tese do Poder, inversamente, o indivíduo que nos primórdios tornou-se líder não foi o que reprimiu os instintos dos outros, mas o que tinha força suficiente para fazer prevalecer os seus. A animalidade aqui é a violência como meio de resolução dos conflitos de interesse. Não há, de início, conflitos de opinião. Porém os conflitos de interesses, que passaram à resolução da comunidade que se descobriu mais forte que o indivíduo, se tornam inerentes a ela mesma, enquanto conflitos pela dominação de classe por um lado, e pela libertação e justiça social pelo lado oposto. A tendência seria contrariada pelos vínculos comuns, e a comunidade prosperaria.

          Contudo, o conflito se desloca para as relações inter-comunitárias. Na Carta a Einstein, Freud fornece valiosa referência à teoria dos instintos, já na forma definitiva. O instinto erótico ele assimila ao sentido, “exatamente” do Banquete de Platão, quanto ao Eros.

             É interessante que o professor Garcia-Roza  ("Acaso e repetição em psicanálise,  uma introdução a teoria das pulsões", Rio de Janeiro, Zahar, 1986) tenha se colocado a questão da origem dos referenciais dos instintos ou pulsões erótica e destrutiva em Freud. Garcia-Roza cita apenas o texto de Freud de 1937 sobre “Análise terminável e Interminável” , no qual Freud referencia um paralelismo de sua terminologia com Empédocles, o filósofo das forças antagônicas, Philia (Amor) e Neikos (Discórdia). Garcia-Roza chega até mesmo à alusão da Carta a Einstein, de 1932, mas por causa do trecho em que Freud se desculpa pelo conceito de instinto de morte, aquiescendo sobre não ser nada agradável propor, não obstante corresponder à sua descoberta científica. Não ocorre de Garcia-Roza subentender a convergência qualquer do Eros platônico, que ele ignora nesse texto, à Philia de Empédocles. Bem inversamente, considera que Freud se ateve a Empédocles justamente por ser este pré-socrático: “posto que pré-socrático designa... um pensamento que é anterior ao discurso conceitual" valorizado  por Platão,  que estaria implicado no “aprisionamento da razão conceitual e a recusa da palavra poética, considerada a partir de então como supersticiosa. O discurso filosófico se constitui por um progressivo afastamento do mito e da poesia em direção à ciência”. (p. 84, 85).

              Nessa interpretação que colocaria Freud bem equivalente a Heidegger, mas que, como vimos, não corresponde ao testemunho freudiano, a teoria das pulsões ou instintos seria pensamento antes da prisão conceitual, que a psicanálise quer situar no lugar do recalcado, o mito, e mais profundamente, ocupar o lugar do recalcado, o mito e a poesia onde o inconsciente é que estaria se expressando.

         Mas de fato, como também objetei em minha crítica à Derrida, Platão não foi o filósofo recalcador do mito, ao menos quando se trata daqueles mitos que ele poderia considerar religiosos. O mesmo se pode afirmar sobre Aristóteles, que só recusava explicitamente os mitos que considerava desvios populares da religião original, como demonstrei em meu já publicado “Filosofia, Ceticismo, Religião, com um estudo sobre Diógenes Laércio”. A metafísica em Platão e Aristóteles é definida expressamente como retorno do mito originário, em que os antigos provariam estar mais próximo da verdade que os atenienses da idade democrática. Sobre isso, naquela publicação, constatei a convergência das teses de Goldshmidt sobre Platão e Aubenque sobre Aristóteles. Essas teses tem especial peso,sobre a controvérsia metodológica contemporânea em história das ideias, como influência metafísica contra a perspectiva da “história efetiva”, o que lá desenvolvi com minúcia, mostrando as paralogias envolvidas na defesa metafísica. A principal é a ambiguidade inextrincável, justamente, de paixão e razão na afirmativa unilateral da verdade transcendente.

            Em todo caso, em 1932 o endereçamento da teoria dos instintos ao Eros do Banquete platônico é inequívoco. Freud não referencia proveniência do instinto destrutivo, porém considera que a física de Einstein, abrangendo a polaridade de atração e repulsão, poderia ter “um nexo primordial' com a contrariedade dos dois instintos.
          Na origem moderna do conceito de Inconsciente, entre o pré-romantismo e a era romântica, a dialética foi também originada na teoria elétrica, que então se enunciava pela descoberta recente da força polarizada. O curioso, a meu ver, é não ter havido consciência do caráter anti-metafísico em geral, e anti-aristotélico em particular, da inteligibilidade da força, uma vez que sendo polarizada, as qualidades de positivo e negativo já não são separáveis, como categorias acidentais, da substância ela mesma, como categoria essencial de “eletricidade”. Pelo contrário, se aprofundou a influência do aristotelismo oriental, imanentista, em Schelling, e, depois, desde Hegel, da noção de “enteléquia” aplicada à história para uma filosofia da evolução que aporta em Driesch. Isso se explica, portanto, pelo caráter orientado ao progresso, e, assim, a um ego da história, que tem lugar na “modernidade” (“ocidente”) da teoria evolucionista.
            Podemos afirmar que a dialética da aufhebung foi também originada na teoria elétrica, que então se enunciava pela descoberta recente da força polarizada, sendo anterior ao uso genial que dela fez Hegel. Aqui Freud insiste justamente na reciprocidade e inseparabilidade dos dois instintos, pois se a autoconservação tornou-se erótica nessa segunda acomodação da teoria psicanalítica, a agressividade é requerida ao alcance da meta, assim como a possessividade quando se trata do amor pelo objeto, a qual faculta o impulso de apropriação dele. Enquanto Freud considera que o amor do objeto é posse, Lacan o considera mutilação por ser seccionado como um “objeto a” (como objeto a chupar, penetrar vaginal ou analmente, ouvir ou “ver”) da pessoa integral, como podemos deduzir. Aqui, contudo, Freud informa a conjugação de muitos mais motivos ou impulsos da ação.
            Torna-se algo ambígua sua expressão, mas parece que ele classifica-os entre os eróticos e destrutivos, não obstante cada um ser mescla de ambos, a predominância sendo a meta e o complemento sendo o facilitador. Aí ao erótico se soma o ideal – podendo ser o mesmo conforme parece – oposto ao destrutivo. A partir desse trecho, Freud passa a referir-se à sua teoria dos instintos como um tipo de mitologia, e até mesmo considera que o mito pode ser o termo de toda ciência – algo irônico, pois entre ser o termo ou resultado, é ambíguo entre ser o objetivo ou a interrupção, limitação.
           Freud considera, ao contrário do escrito que antes citamos, fácil combater a guerra como canal do instinto destrutivo, pelo incentivo a Eros, mas retoma a concepção do líder na origem, porque as ligações afetivas tanto são eróticas ou por identificação, e a teoria de Freud sobre a liderança é que a massa se identifica com o líder por substituição inconsciente do pai privado pelo líder comum. Aqui porém, Freud já considera a repartição entre líderes e dependentes, “inata e inerradicável”. A educação da casta dominante se tornaria a questão principal, se a psicanálise fosse bem assimilada, ainda que o ideal seria que todos se tornassem racionais, mas se assim os vínculos afetivos seriam abolidos/renunciados, isso não resultaria senão em ligações mais fortes sob “a ditadura da Razão”. Freud concede que tudo isso é pouco prático, e ele fala ainda sobre existirem outros meios que porém não funcionariam senão a longuíssimo prazo. Afinal contenta-se em considerar a guerra algo “biologicamente fundamentado” e a questão se torna mais do que respostas às questões propostas por Einstein, a que Freud arrisca considerando que sendo assim o que se devia explicar é porque consideramos a guerra inaceitável. 
         E ele o responde cabalmente, além do instinto autoconservativo, utilizando o conceito de “orgânico”, ao expressar o instintivo, enquanto processo evolutivo da cultura, isto é, a internalização da agressividade – que a substitui pelos modos educados – e o fortalecimento do intelecto. Freud considera que a cultura só tem periculosidade por neutralizar o instinto social procriativo, comentando que “raças incultas” e “camadas atrasadas da população” já estavam se multiplicando mais do que as cultivadas. Sem lembrar que o desenvolvimento econômico implica muito maior longevidade – assim as classes depauperadas se multiplicam mais, porém se conservam menos – mas sendo essa consideração marginal à defesa da cultura como aquela evolução fatalmente contrária à guerra como desrepressão dos instintos.  A repressão aqui, repetindo, tendo o sentido freudiano de interiorização da lei: “tudo o que promove a evolução cultural também trabalha contra a guerra” - epígrafe que encerra a Carta. Eis algo bastante contrastante com o escrito de 1930, “O mal estar da civilização”, cuja conclusão fôra de que todo o imenso esforço civilizatório podia bem não valer a pena, sendo o resultado possível “tão só uma condição intolerável para o indivíduo”. Freud de fato se confessava ainda muito ignorante para ousar uma decisão indubitável, sendo também afirmável que a civilização é evolução natural, e, assim, inteiramente inevitável.
         
     II    Os Instintos e as Perversões

                O que observamos ainda não fornece base para interpretação acerca da teoria dos instintos, que foi até aqui superficialmente tratada como o correlato negativo da teoria da civilização. Mas está bem assente que Freud considera uma total oposição de indivíduo e sociedade, na exata proporção de um reducionismo que compele o primeiro à fragmentação do idealizado Si narcísico em instintos organogênicos tais que o âmbito sexual seria determinante do psiquismo, e a oposição entre o construtivo e o destrutivo pode ter vários pontos de incidência ao questionamento da estranheza do que se opõe ao determinismo sexual. Resta que a contaminação do “instinto” ao que é afinal o oposto a que serve o instinto biológico, totaliza a psique nos termos da passionalidade, ao menos a psique original e que não termina nunca, como o recalcado sempre potencialmente a retornar. O que se torna curioso aí, é, pois, que o ego não se nomeie quando se trata da correlação psicanalítica de instinto e civilização. Seria ele que Freud visa quando se refere a razão ela mesma como a um “império”?
             Freud examina os dois possíveis quanto à civilização. Entre a atrofia de instintos e o monopólio da violência, como entre a biologia e a sociologia, em todo caso a alternativa racional restaria ainda apenas como mais um determinismo. O que faz inclinar a esse partido do inexorável é claramente a dominância dos instintos sobre a vida psíquica. E de fato o “sobre” aqui , em vez de “na” própria, é conveniente. Os instintos são a mola oculta mas não se dão a ver, estão mascarados. Porém não é tanto que a boa razão sobrevindo no tempo os descobriu lá onde estavam, por trás da máscara.
       A razão não opera sobre os instintos sem risco de ser engolfada por eles, e em todo caso, assim que eles são verifica-se ela destituída de sua autonomia porém num sentido bem preciso do seu ser autônomo, a saber, aquele que faria o mal, a ausência de relações legitimáveis porquanto refletidos na objetividade do direito recíproco, o avesso radical de si. Os instintos reinam mesmo quando recalcados e proibidos por uma razão que atingiu na ciência a autoconsciência. Pois seriam eles ao mesmo tempo outro, o inconsciente e o arcaico, e o indivíduo ele mesmo a profundidade do que sente como o que o faz sentir resolvendo-se o enigma do que ele é. A repressão egológica racional erradica a profundidade, abate-se contra o ser. Mas se os instintos nomeiam doravante o ser, o que se pode dizer que “é” se aquilo que eles fazem é solapar a unidade compreensiva, reflexiva?
           Os instintos em Freud, realmente não se pode negar, de certo modo vão no sentido do “pre” da “pre-sença”, o Dasein heideggeriano. Multiplicidade em trama de significados, como as partículas de probabilidade que povoam posicionalmente o sistema atômico. Os instintos e os significados são determinantes e desmascaram o múltiplo contra a aparência do uno, mas não o fazem sem que o uno mesmo seja afetado de um signo negativo ao extremo, a fabricação de um domínio. Estranho resultado, pois que pode haver de mais dominante que o determinante da realidade de que trata a psicanálise, como nova física, ou physis, do antigo Ser? As mesclas instintivas em Freud compõe-se como a trama das variações polissêmicas em Heidegger. Eles são flutuações no vazio, a rosa é sem porquê. Não são os fatos que provocam traumas, é sim o trauma a alma encenadora no teatro dos fatos. Não são as coisas que impuseram seu significado mas uma experiência que é devir, significante, “semata” como na palavra de Parmênides o que se mostra, se revela, e Heidegger, na Introdução à Metafísica (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1966, p. 157) acautela contra confundir-se o manifestar com “sinais do ser” ou “predicados”. Não são nada de fora atribuído, é “algo que, a respeito do ser, mostra-o em si mesmo a partir dele mesmo” .  
             A “experiência grega” permitiu que a linguagem o expressasse, outras experiências traduzem a língua sem apreender o sentido, a filosofia na época do terror, da guerra tecnológica, é experiência que torna à proximidade da escuta original. Em todo caso, o múltiplo que espreita o uno e o surpreende sempre subverte o conceito repousado na tradição das traduções traidoras. É a razão ela mesma um vício? Mas isso na acepção do incontrolável e inevitável, o compulsivo, como a dissimulação, a máscara do domínio instintivo? A teoria dos instintos, como ressaltei, interessa aqui sobretudo como um discurso psicopatológico e sócio-evolucionista projetado como etologia das perversões. Não obstante a coincidência dos termos adequados ao “Trieb”, Garcia-Roza demarcou a importância da dessemelhança em Freud, dos conceitos de “instinto” e “pulsão”. Teríamos em qual destes o correlato do pervertido? A pulsão, conforme este referencial, atuará “marcando o limite do discurso conceitual”, desenhando o seu horizonte”. Mas importante é a ressalva: “Situado aquém do inconsciente e do recalque, ela escapa à trama da linguagem e da representação...”. (op. cit. p. 11)
        A pulsão diferenciada dos instintos em Garcia-Roza causa alguma perturbação tradutora. É habitual que se traduza o famoso texto de Freud “Triebe und Triebscihksale” como “Os Instintos e seus Destinos”, mas Garcia-Roza designa, ao invés, “A Pulsão e suas Vicissitudes”. Na verdade, não obstante a recusa do termo “instinto” ser muito praticada entre os intérpretes mais recentes de Freud, “Schiksal” é bem mais geralmente vertido por “destino”, como em “drama do destino” (Shicksalsdrama) para uma vertente do romance romântico alemão a exemplo de Kleist. Mas a reflexão que justifica a mudança do termo abrange alguns itens interessantes como roteiro temático da questão do “Trieb” freudiano.
         A relação do conceito psicanalítico com a biologia, é abordada de certa perspectiva unilateral. A reserva psicanalítica que descarta toda a relação parece-me algo duvidosa, pois não tem o cuidado de especificar de que biologia se trata, a nossa ou a do tempo de Freud. Uma vez que a de 1915, o referencial do artigo freudiano citado, admitia interpretação como a que Freud utilizou: “A biologia ensina que a sexualidade não deve ser posta no mesmo plano que as demais funções do indivíduo, que as suas tendências vão além do individual e tem por conteúdo a produção de novos indivíduos, ou seja, a conservação da espécie” (edição Companhia das Letras, 2010. p. 62). A oposição cardeal de indivíduo e sociedade retorna, porém já apenas subjacente à oposição de que a orientação psicanalítica deriva, a biológica, entre indivíduo e espécie. Assim, Freud considera que a biologia “não contraria certamente a distinção entre instintos sexuais e do eu”.
           Porém hoje não consideramos o aparelho reprodutivo sob qualquer hipótese num plano distinto do organismo. Mesmo na época de Freud, não havia relação necessária entre a existência de um plano sexual orgânico autônomo e o que ele idealizou como instintos sexuais que, sendo igualmente destrutivos, eram freados pelo seu antagonismo com os instintos do eu, autoconservadores. Ao fazer da função autoconservadora exclusiva do Eros, na reformulação da teoria em 1920, a tendência repetitiva que está na base do instinto destrutivo se torna também  oposta à do ego, que se coloca ao invés na vertente do Eros. 
             Assim há uma aparente contradição.  Na pulsão destrutiva algo é repetido ao menos como tendência, o estado inanimado, mas quanto aos instintos sexuais, o que reproduzem de originário é somente a “fusão de duas células germinativas”, ou seja, exatamente o que Freud antepôs ao individual, raciocinando conforme uma teoria biológica da época. A fusão germinativa ocorre sem um acontecimento original a repetir-se, além do que Freud considera poder emprestar a Weissman, como a então crível cisão biológica de soma individual e  plasma germinativo reprodutivo, o que vimos acima como a clivagem de planos do organismo, sendo o primeiro mortal e o segundo imortal pela perpetuação da espécie.
              O apoio da teoria não seria possibilitado hoje da perspectiva biológica, e torna-se realmente questionável se Freud poderia ter desenvolvido qualquer das suas teorias dos instintos na atualidade. Assim também o caráter bisssexual do inconsciente, que deve porém ser desenvolvido até a escolha do objeto heterossexual,  não tem comprovação na atual biologia do sexo, que pode explicar a bissexualidade (hermafroditismo) apenas como degeneração dos constitutivos sexuais hormonais, que porém não são os únicos, havendo também componentes genéticos e celulares que especificam os corpos feminino ou masculino. A conservação da teoria do inconsciente depende hoje de certa clivagem relativamente ao biológico que na época de Freud não seria necessária. 
            Com relação à teoria da memória de traços inconscientes,  não há dúvida, pois se deve exclusivamente à crença científica da época de Freud, hoje refutada, de que a qualificação do dado perceptivo extrapola o aparelho perceptivo, que teria que neutralizar-se de todo entre duas percepções seguidas. Após uma primeira percepção, para ser receptivo à segunda, o aparelho perceptivo teria que estar inteiramente vazio de conteúdo.
          O escrito de Breuer e Freud sobre a histeria assinala essa dependência da fisiologia da época bem explicitamente. Porém experiências de laboratório quanto à percepção, posteriores, permitiram a convicção já na altura dos anos cinquenta de que tal perspectiva era precipitada. A soma temporal, a sensação de acúmulo de tempo numa percepção, é exclusiva dos mecanismos da visão, assim também qualificações relativas ao espaço. Expressamente se assume hoje que entre duas percepções visuais seguidas, a segunda recebe qualificações que vem da primeira, não havendo qualquer momento de total neutralidade visual entre ambas. Não obstante isso não prejudicar totalmente a acuidade da segunda, pode criar situações ambíguas ou devidas apenas à soma perceptiva, que não se verificariam de outro modo. Se a psicanálise continua aplicável, assim como também teorias da psicologia, teriam que se relacionar ao fato de que também influi na percepção condições de personalidade própria.  
           Na caracterização de Garcia-Roza, a pulsão já é teoria independente da biologia, como vimos. Não obstante a dependência disciplinar que examinamos, também conforme Freud o “trieb” é “Grundbegrieff”, “conceito fundamental” e assim “seria ingenuidade pensarmos que um conceito teórico pudesse pertencer a duas ciências distintas e ainda por cima manter-se como fundamental”.
                Porém a noção biológica de “taxias” é bastante relacionável a de “impulsos”, “pulsões” ou “instintos”, conforme se queira traduzir o “Trieb”, e de fato “instinto” é a base do comportamento animal.  Em todo caso, não seria negável que o Trieb psicanalítico tem um sentido autônomo, e estamos interessados em compreendê-lo, por exemplo, se seria bastante atribuir um sentido humano oposto ao de animal. Assim o que Garcia-Roza procede nesse trecho é a cisão do termo Trieb em traduções biológica e psicanalítica, respectivamente o “instinto” e a “pulsão”. Ele utiliza-se aqui dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de Freud ( Coleção “Obras Completas de Sigmund Freud”, publicado sob o título “Uma teoria sexual”, Rio de Janeiro, Delta, s.d., 8 v.)
               Nesse texto freudiano, vemos o trecho que Garcia-Roza considerou decisivo, e a referência torna-se proveitosa ao tema das perversões, pois trata-se da observação de que “para além das chamadas aberrações sexuais, Freud insiste no fato de que a sexualidade humana é, em si mesma, aberrante: aberrante em relação à função biológica da reprodução. O que a pulsão sexual visa não é a reprodução, mas a satisfação”.
              Até aqui, a propósito do tema, o texto freudiano converge inteiramente com a interpretação de Garcia-Roza. Freud observa que “mesmo o ato sexual mais normal integra visivelmente aqueles elementos cujo desenvolvimento conduz a aberrações que descrevemos como perversões”. Porém o que havia sido descrito até aí limita-se aos desvios da homossexualidade, pedofilia e zoofilia, e a cisão da atração sexual em objeto e finalidade. O grupo estudado seria de perversões (desvios) relativas ao objeto. A consideração que citamos introduz o estudo do grupo de perversões relativas à finalidade. Na atualidade o conceito de perversão tem sido muito mais amplo, abrangendo as contradições ou mentiras no habito da fala. Mesmo na época de Freud, a atribuição de perversão não coincide com o de neurose. 
            Que não obstante o que vimos anteriormente, há algo especificamente humano, assim psicanalítico, na sexualidade, poderíamos demonstrar ser o que Freud afirma, também por isso que do contrário poderia ser atribuída a perversão como mero sintoma no quadro da doença mental (cerebral), mas não sendo o que ocorre, senão quando o grau da perversão é demasiado alto.
          A proporção da perversão estaria na normalidade enquanto é ela uma translação generalizada, isto é, qualquer, da natureza e valor do objeto para a natureza limitadora da própria pulsão que dele só extrai satisfação conforme um imperativo arbitrário. O beijo seria perverso mas num grau normal, pois em todo caso é uma translação da meta sexual, a penetração. 
              Mas Garcia-Roza considera que a partir dessa delimitação, “o mínimo que podemos dizer da sexualidade humana é que ela não é natural, mas que se encontra necessariamente submetida ao simbólico”. Nessa interpretação lacaniana, “é do corpo submetido ao simbólico que Freud nos fala”, inversamente à psicanálise relacionar-se ao corpo biológico ou natural. (p. 14)  
            Essa ilação coaduna-se apenas parcialmente à complexidade dos motivos freudianos. A translação de fato, por sua variável classificação em normal, pervertido não patológico-mental e pervertido patológico-mental, só porta sobre “natureza e valor do objeto” enquanto é este o órgão sexual efetivamente procriativo. O beijo e também o coito anal heterossexual são perversões normais: “em nenhum homem normal falta agressão de caráter perverso à finalidade sexual normal”. Porém o que implica a pulsão como superação de resistências a exemplo do pudor, repugnância e consciência moral, na consecução de sua meta sexual, até aquelas formas de translação sem qualquer proximidade ao que pode ser integrado a um coito regular, como a cropofilia, prova apenas “a máxima participação psíquica na transformação do instinto sexual”. (p. 36). O que Freud designa “labor anímico” é “a idealização do instinto”, como o que tem dessa idealização o caráter.
          Mas a complexidade retorna pelo caráter pulsional como não sendo “algo simples e sim composto”. As perversões são um tipo de separação dos componentes, e tanto que perversões como o fetichismo são fixadas depois, não antes, de “um período inicial de desenvolvimento sexual normal”.  (p. 37) Aqui o importante volta a ser, contudo, a relação psicossomática, redefinindo “instinto” como um dos conceitos limites entre o psíquico e o físico.” (p. 43) Os “instintos não possuem definição por si, são quantidades de exigência de trabalho qualificadas conforme as fontes somáticas e seus objetivos”.
           Garcia-Roza contrasta vários textos de Freud que mudam a noção das próprias fontes, entre o órgão sexual, as zonas erógenas,  e todo o organismo seria potencialmente sexualizável como fonte pulsional. Assim para ele pode-se enfeixar a intuição de Freud com base em que a pulsão se apoia na fonte como do instinto, mas para desviar-se e construir-se autonomamente, e esse desvio é a perversão. Utiliza para essa conclusão a referência de Freud à “experiência de satisfação do lactente” como “protótipo da experiência de satisfação sexual”, de modo que aí veríamos “um comportamento instintivo servindo de fonte para a pulsão: o instinto de alimentação fornecendo a base de prazer-desprazer do lactente”. (p. 15)
              Contudo, assim os componentes instintivos não teriam o peso que Freud atribui quando fala dos “instintos parciais” que aparecem quase sempre formando pares antitéticos como “instintos de contemplação e exibição” ou “passivo e ativo de crueldade”. Independente do problema da tradução, vemos que não há a duplicidade do instinto e da pulsão decorrente de desvio, mas a própria fusão dos componentes instintivos já está orientado pela libido. (Freud, op.cit. p. 42)
             Assim até aqui Freud não forneceu nenhuma pista para a reduçaõ da libido a “simbólico”, que, inversamente, como conceito lacaniano originou-se, como se lê em Os Complexos Familiares (Rio de Janeiro, Zahar, 2008) na recusa do conceito freudiano fundamental como “Trieb”. Conforme Lacan, “repudiando o apoio que o inventor do complexo acreditava procurar no conceito de instinto, acreditamos que, por um reviramento teórico, é o instinto que se poderia esclarecer atualmente por sua reverência ao complexo”, estando o complexo condicionado “por fatores culturais, à custa dos fatos naturais.” (p. 17, 15)
            Assim Lacan está considerando confrontar-se opositivamente a “esta co-naturalidade do organismo no meio ambiente aonde estão suspensos os enigmas do instinto.” (p. 17) Como “organização da vida psíquica”, os complexos tanto podem ser inconscientes como conscientes, em todo caso é na família que o fenômeno psicanalítico lacaniano se forma e se torna objeto da ciência. A família é um conceito que podemos considerar atravessando a oposição de indivíduo e espécie, indivíduo e sociedade. Assim de fato Lacan extrapola o contexto estritamente freudiano do Trieb, e o “simbólico” lacaniano assim como se conceituará conforme a metodologia estruturalista não tem aí o seu referencial de origem, posto que a família é noção emprestada a sociologia de Durkheim. Mas se o indivíduo é de fato a gênese, o que permite a concepção do “Simbólico” como regra comportamental é o “Imaginário”, e a família seria pois o conteúdo e meio daquilo que mais tarde Lacan elaborou como esta noção estritamente subjetiva. 
             Um outro aspecto complicado na interpretação de Garcia-Roza, é que ele coloca a idealização como decorrente da sublimação (p. 17), mas como vimos, a idealização é o que Freud considera a natureza mesma do Trieb enquanto não apenas somática como também psíquica. A sublimação seria uma forma de idealização dessexualizante, não o que está atuando na realização da meta sexual mais ou menos canalizada por uma delimitação perversa que transtornará a diretiva puramente física do ato de modo que a excitação e o objetivo do desejo se ampliam aos vários aspectos do corpo e da pessoa desejada. 
             Mas o aspecto mais difícil da concepção de Garcia-Roza, como a tese que explica o título do livro, é que a pulsão seria a revivescência de uma satisfação animal, anterior à hominização. Aqui a contradição entre idealidade e animalidade é contrabalançada por um conceito de vida animal na origem caótica, podendo manifestar qualquer comportamento, o instinto fixando possibilidades vitalmente garantidas, e a pulsão representando o acaso primordial (p. 17, 18) 
            O instinto agora é um possível da pulsão, já não o contrário. Porém assim Freud teria que ter pensado a pulsão de morte, a tendência à repetição até do inanimado, como o protótipo de toda pulsão, já que quanto a esta, “não tem por objetivo a autoconservação, a reprodução do 'mesmo', mas é sobretudo expansão, produção de diferenças, lugar de dispersão”. (p. 19)  Ora, a pulsão de morte freudiana, bem inversamente, sendo a tendência destrutiva, pois desejo restrito a repetidor do mesmo, podemos considerar que se opõe a Eros ou à vida como ao que tende a esse heterogêneo, o desejado da fusão germinativa dos dois componentes celulares biológicos, conforme o  "Além do Princípio do Prazer" (Cia. das Letras, p. 211).
          A meu ver, assim permaneceria o enigma da origem da pulsão destrutiva, a menos que a relacionássemos à oposição construtiva da psicanálise freudiana, como vimos. A oposição de indivíduo e espécie é a mesma de mortal e  imortal que na biologia emprestada de Weissman designa respectivamente o organismo individual e a função sexual que serve unicamente à espécie. Na segunda teoria freudiana, a mesma oposição está designada, mantendo o paralelismo, como entre pulsões destrutiva e de Eros. 
              Na primeira teoria, como vimos, a oposição era entre instintos libidinais e instintos autoconservativos egoicos, de modo que os libidinais seriam potencialmente perigosos por se dirigirem a algo fora do sujeito que para ele se torna mais importante do que o si mesmo. Em compensação o esforço do eu para impedir a dissipação libidinal poderia acarretar censura a investimentos libidinais que não ultrapassaram o limite do perigoso. Assim como na primeira teoria, também na segundo o "ego" integra o "Sujeito", mas este tem também outros componentes como o id pulsional e o superego moral. 
               O que mudou na segunda teoria, opondo apenas o conservativo criativo erótico egóico e o destrutivo repetidor, foi a concepção do indivíduo, desde um ser de desejos/desvios próprios a um ser de repetições compulsivas. E a mudança corresponde à solicitação motivadora da segunda teoria, o fato de Freud ter fracassado na primeira interpretação dos sonhos como cumprimentos de desejos, na decorrência dos neuróticos de guerra que tinham pesadelos com cenas de batalha que obviamente não desejavam que ocorressem. Freud até aí havia sido tão tenaz na defesa de sua teoria dos sonhos como realização de desejos que certa vez, confrontado ao fato de não conseguir explicar o sonho da paciente, respondeu a ela que o desejo havia sido levá-lo a contradição consigo mesmo.  
            Ao que parece, um dos problemas da interpretação de Garcia-Roza é que contesta o conceito de “satisfação” da pulsão, pela “eliminação do estado de estimulação da fonte”, conforme Freud nos Três Ensaios, porque segundo o próprio Freud, a pulsão é essencialmente sublimada e assim dessexualizada, desviando-se da meta original. Porém essa consequência não parece necessária. Por outro lado, a concepção de Trieb como “representante psíquico dos instintos internos” que “atingem a alma como corpo”, que Freud apresentou em “Trieb und Triebschicksale” (op. cit. p. 57), parece ser o que Garcia-Roza considera o bastante para uma função fundamental de desvio na pulsão. Como não se pode atribuir instintos internos à repetição, vemos que ele chegou à concepção de acaso criador moldado na pulsão de morte para evitar um hiato muito profundo entre as duas fases da teoria psicanalítica. Mas o próprio Garcia-Roza convém que essa concepção do instinto fundamental como acaso originário não tem muita credibilidade. Se a pulsão é repetidora, como agora reconsidera - uma vez que antes a pulsão destrutiva não tinha qualquer designação própria, não se compreende a hipótese expansionista até aí enunciada quanto a ela – a conservação seria hipótese religiosa de Freud, encontrando o fundamento da ordem do mundo na matéria, como prescrevia a antiga physis pré-socrática.
            Uma vez que a leitura de Garcia-Roza privilegia a meu ver demasiadamente a repetição, para fazer dela um continuun com a filosofia, assim não colocando a importância da fixação numa fase ou posição do inconsciente que impede neuroticamente o desenvolvimento, como sentido da repetição que não é o mesmo que aquele descoberto na pulsão destrutiva, seria algo ocioso perseguir suas consequências por agora. Mais interessante se torna a questão da perversão como temática relacionada por Freud à conduta infantil. 
              Todas as ambiguidades da condução freudiana poderiam ser considerar mais como uma espécie de mapa de questões fundamentais do psiquismo assim como ele as supôs, onde a variedade contraditória de respostas a cada uma delas constituiriam direções de pesquisa por vir. A psicanálise não é filosofia por isso que sua clínica se presta cientificamente a falseamento posterior de hipóteses, e se exerce como pesquisa, não obstante ser ela também “teoria” -  como também  qualquer ciência.  Mas as variações vem convergir sem dúvida numa decisão fundamental em nível teórico, a propósito da relação indivíduo-sociedade. 
          Enquanto o ser de inclinações passionais irrefletidas, impulsivas, que formam um corpo singular como combinatória de ações possíveis, o sujeito está de certo modo já constituído na sociedade que impossibilitou certas realizações mas permitiu ou solicitou certos outros modos ativos. Contudo, Freud também fala de sociedade como anulação do indivíduo. Qualquer das duas possibilidades, a sociedade constitutiva ou abolitiva, encerra um pessimismo shopenhaueriano do ser, não uma physis da ordem natural religiosa que lembraria mais a vontade de potência de Nietzsche.  Vemos que na vontade de potência as paixões correlatos da pulsão podem ser transmutadas de "pesadas" em "dançarinas", assim o que impede e o que libera a ação, mas isso é irredutível à sublimação de Freud visto que somente esta contem um sentido socialmente ordenador. A vontade de potência mesma é irredutível à libido de Freud, pois se ambas são conceitos de força ou energia, só a libido é de natureza sexual e na infância necessariamente relacionada ao pai e a mãe. 
            A sociedade para Freud em todo caso é apenas a hipocrisia necessária e instituída, mas o indivíduo em sua pura factualidade é o mundo da crueza pulsional, onde não se contenta com a ideologia galante do amor acima da proveniência do órgão sexual. Uma vez que mesmo assim esse mundo instintivo é que foi investido pela modernidade revolucionária, desde Nietzsche a Artaud a Marcuse, se bem que cada um deles de modo original, aqui é o que mais interesse revelaria. O que tem sido ao longo de um século, incessantemente renovado como a mensagem “política” da libertação do corpo pulsional? O quanto Freud é realmente o seu promotor, ou, inversamente, o seu algoz? ( A propósito de Marcuse, ver meu blog "psicanálise e psicologia", que antecede a este, sendo trecho do mesmo estudo; sobre Artaud ver meu blog "trajetória da vanguarda".)
          Para Artaud e o surrealismo, Freud e a psicanálise são as instâncias censoras, que precisariam desfazer o preconceito etnocêntrico para tornar a valorizar a magia, o animismo e a mística, que entretanto eles é que redefiniram como uma “espiritualidade” que teria entretanto relação básica com o corpo material. Porém essa materialidade como campo do possível na trieb é o que Freud ao mesmo tempo vislumbra mas deixa de considerar enquanto efetiva, em concepções do real corpóreo como as do Oriente ou dos primitivos, bem irredutíveis ao puramente carnal dos “ocidentais”
             Em Marcuse, como vimos, Freud apenas recuou por ter subestimado a força de Eros na conservação da vida, enquanto, ela, expansão e agregação contínua, superação de obstáculos. Assim Marcuse se opõe ao conceito freudiano de instinto de realidade como também ao de repressão. Mas aqui o papel fundador de Freud conserva-se importante, e o papel cardinal dos instintos por ele definidos – ou delineados, pois para um catálogo exaustivo Freud se confessou impotente. É esse o ponto de incidência de nossa avaliação do discurso da liberação libidinal. Conforme Freud, não se deveria considerar a infância, e por extensão o inconsciente, sem o componente da crueldade – aquele mesmo que Artaud privilegiou em seu teatro, como o que espelha o que ocorre na natureza e no mundo da necessidade, de modo que o teatro agiria contrariamente a um outro juízo, muito severo de nós mesmos ou de nossos semelhantes como fracassados ou heróis, e induziria à compaixão por todos os seres assim expostos à vicissitude inexorável.
              Podemos porém defletir decisivamente o caminho da liberação libidinal, observando que na vida adulta sublimada é que se estabeleceram os meios de superação dos obstáculos ao que atrai o interesse pelo bem estar social. A libido é essencial componente da vida, assim o inconsciente não fica de todo recalcado quando crescemos e nos tornamos conscientes de modo que não reconhecemos qualquer impulso originário e pensamos em nós mesmos  como "eus" racionais autônomos.  Mas se manifesta na efusão do carnaval, na arte, na festa, e mesmo em certas ocasiões de sonho, mas seria necessário que a compreendêssemos em devir, não apenas o instinto primário, pré-genital, mas também a sublimação e o que se manifesta como comportamento “secundário”.  
             Em qualquer destes comportamentos coletivos como o carnaval, onde as fronteiras do indivíduo e dos outros se desvanece, pois, estaria manifesto o inconsciente segundo Freud, pelo quê ele pôde também definir o "comportamento de massa" em sentido estrito, exemplificado nos comícios nazi-fascistas ou na histeria aparente perante um ídolo de massas: a) como dependendo de um líder que substitui o pai no inconsciente individual; b) como o que abole as faculdades comuns do raciocínio, capacidade consciente de juízo, nível normal da inteligência, revertendo ao comportamento infantil da libido "pré-genital". 
           Na verdade o próprio Marcuse é algo ambíguo, por lançar a plataforma política do “pré-genital”, assim de todo contrariamente a Freud atribuindo o instinto destrutivo ao aprendido na repressão sublimadora que conduz ao "genital", mas ao propor o conceito de “autossublimação” do instinto independente da repressão primária, não obstante o quão complicado pareça ser entender o que realmente significa, uma vez que se utiliza de Schiller e de protótipos míticos como Orfeu e Narciso, o que ele faz subentender é precisamente a libido em devir, não conceitualmente separada do seu destino como sublimação. Já vimos que o problema que Marcuse soube explorar na teoria psicanalítica, independente das inconsistências do seu pars construens,  é o enlace da concepção desse destino com o princípio de realidade, uma vez que ele soube enfatizar o quanto só pode ser histórico, mutável, inversamente a um parâmetro analítico. E o que Marcuse proporciona assim é a visão em devir da realidade mesma, o que na teoria original de Freud ficava bastante ambíguo.
           Contudo, se torna-se necessária essa tarefa até hoje sem lastro na tradição conceitual, que é pensar o devir, ao menos já estamos cônscios da impropriedade de tentativas como a de Deleuze-Guattari, como mera introjeção de esterótipos, devir da cultura como se oposta à objetividade, pela qual porém é que compreendemos a questão política sem reduzir as estimativas a casos de identificação ou passionalidade idiossincrática. Mas é esse elemento do devir que a psicanálise paradoxalmente parece ter dificuldade em explicar. Porém é indubitável ter sido nesse rumo que progride a grande fortuna crítica da contribuição de Lacan.
         A reserva a considerar essa contribuição como "psicanálise" tout court se justificam pela contínua e corrosiva crítica que Lacan lançou às interpretações costumeiras da psicanálise como via de acomodação à ordem sócio-histórica considerada preexistente. Se há uma evolução evidente do pensamento lacaniano desde os tempos dos “complexos familiares” até as polêmicas estruturalistas que ele sustentou especialmente dos sixties em diante, ela se fez nesse sentido de uma problematização crescente do devir, em função de que nossas capacidades de objetividade em nível “simbólico”, isto é, ideológico e/ou científico, tornam-se conceituáveis sem prejuízo da projeção dessa famosa “ordem” - que por tudo que podemos constatar, nunca está definitivamente dada, sempre permanece em construção da qual nossa participação depende e em que se integra.
        Mas a pedra fundamental da filosofia, como milenar tradição intertextual da origem grega, sendo o conceito, eis o lugar comum, é a impossibilidade de pensar o devir. Podemos considerar o paradoxo da sublimação psicanalítica em geral e a de Lacan em particular, a partir dessa questão: terá ela franqueado o limite?
            Ora, o próprio Garcia-Roza, independente da crítica da razão que acima observamos, atribui a Lacan uma concepção estritamente racionalista, inversamente a Cassin, que pretendeu um Lacan sofista. 
             Vemos que de fato, Lacan defende o inconsciente como gênese da racionalidade, assim como trajetória do "sofisma", uma informação inverídica quanto à realidade, à lógica definida como certeza empírica, relativa a estados de coisas.  A denegação de qualquer physis psicanalítica porém, é expressa em Lacan, já na “Questão Preliminar” ao tratamento da psicose, assim tornada “possível” - o que para Freud ainda não era.  Primeiro a ironia desconstrutora da “Physis em sua matematização mais pura”, que porém vai ao extremo ao inverter-se na antiphysis, ou seja,  o “aparelho vivo que se pretende apto a dimensionar a dita physis”. (Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, p. 537) 
         Ao que vimos até aqui torna-se relevante a observação freudiana do Eros como conceito platônico, pois se não se desenvolve por si, contentando-se com a alusão, é em Lacan que esse desenvolvimento platônico irá explicitamente se elaborar. Com efeito, ele reporta a psicanálise como ciência  de longa elaboração, cujo início estaria no Teeteto. A  combinatória matemática como linguagem ou estrutura do inconsciente, já no âmbito das pulsões reduzidas por Lacan a significante ("Outro"), resolve teleologicamene os complexos pulsionais como trajetória à consecução ideal do "nome do pai",  quando a "Imago" ambivalente do complexo se torna objeto coerente e se fixa a identidade ideal da criança. A idealização interveniente do "nome do pai" seria coerente com esse platonismo. 
         Assim também a  lógica em Lacan é aristotélica, pois Lacan  considera que o quadro das quatro proposições (universais afirmativa e negativa, particulares afirmativa e negativa) de Aristóteles é a possibilidade do inconsciente subjetivo como trajetória idealizante do "Outro". A idealização é caminho da razão e da ciência através da história, conforme um a priori androcêntrico tal que se o matriarcado fosse pensável, seríamos irracionais, pois Lacan associa estritamente o que define como o básico da razão, a universalidade proposicional,  com o estatuto do homem ("todo homem é..."). Jogando assim com o fato da língua pelo qual "o homem" tanto é indivíduo como espécie, o que não ocorre com o termo "a mulher". A consequência da contribuição de Lacan é porém muito evidente  na história das ideias contemporânea como crítica da ideologia da dominação. A contradição aparente da base idealista com essa consequência examinaremos oportunamente. 

       
   III
          a)  História da Psicopatologia e Explicação Psicanalítica

         As relações de psicanálise e psicologia na origem são constitutivas. Freud não inventou a dissociação da consciência como da personalidade. As escolas de psicologia nascentes na mesma época que a psicanálise tem em comum o mesmo problema da cisão.
           Nem seria necessário reportar que o termo "inconsciente" como teoria da memória virtual inicia-se com o romanismo, quando emerge na história o Sujeito pensável,  tendo sido proposta  por Carus e por Schubert. A questão dos fenômenos psíquicos alheios à consciência normal como a ação sob hipnose, estados de apaixonamento profundo, sonambulismo, experiências decorrentes de alcoolismo, etc., é já nesse momento pioneiro o fator que impele à teorização. Ocorre que nessa pioneira formulação, o ego seria "fato primitivo" como na expressão de Biran. Na transição do século XIX ao XX, com o nascimento da psicopatologia, quando os mesmos fenômenos psicopatológicos e outros recém-reportados clinicamente como a histeria se tornam matéria médica, descobre-se inversamente que nos três anos iniciais a criança não tem conceito de individualidade.
         As escolas de "psicologia", ulteriormente à clínica psicopatológica se tornaram especializações de teorias votadas a explicar que estruturas ou funções mentais estariam nessa fase inicial responsáveis pela maturação normal do ego na época especificada, aos três anos de idade. O behaviorismo, que não aceita a hipótese da "mente" psicológica mas lida apenas com o "comportamento operante" do organismo num meio, como relação de estímulo e resposta,  não teria qualquer teoria do desenvolvimento assim,  porém na verdade tem uma teoria evolutiva dos comportamentos reforçados, isto é, compensados pela eficácia prática. 
            O paralelismo da criança e dos povos não-moderno-ocidentais se tornou dogma nesse momento inicial, uma vez que o ego que se forma é sujeito epistêmico, apto a produzir ciência, estando-se nessa época preso à aparência do ocidente como produtor único uma vez que só pelos resultados da sociedade ocidental se julgava a questão da posse, o que hoje é questionável. Em todo caso, também Freud afirmou sobre o inconsciente ser ele "uma população aborígine" em nossa mente. 
           Assim até hoje está conceituado que o desenvolvimento no sentido do grau civilizacional das nações, se relaciona a mesma  base ego-lógica endopsíquica, e base geopolítica  uma vez que estritamente relacionada ao Ocidente, definindo-o também em termos de antropologia social. Assim tenho proposto o termo geo-ego-logia para a caracterização da modernidade em termos da concepção do Ocidente como Sujeito da História do desenvolvimento, qualquer que seja a teoria antropológica social do desenvolvimentismo.
           E mesmo a teoria da base econômica dos marxismos se tornaram eivadas de meios pelos quais o endopsíquico e o econômico estariam interligados por esse estatuto de "base". Marx mesmo fornece a pioneira ligação, pois a seu ver o auto-conceito ou consciência de individualidade só emerge na história com o capitalismo - de fato na época da produção do Capital, estava sendo superada a teoria inicial do bom selvagem, como indivíduo na origem, agora sendo conceituada aí a horda promíscua à Darwin. Mas certamente no pós-positivismo em que nasce a psicopatologia, seria preciso explicar a surgência do capitalista ocidental na história, quando até aí ela mesma explicava a egoidade.  
           Também se tornou assente que,como o estatuto do "primitivo" ou "subdesenvolvido" pré-ego-lógico, a doença psíquica corresponde a fixação do desenvolvimento subjetivo numa fase determinada, sendo a normalidade a trajetória até a formação do ego nesse sentido da auto-consciência. 
             Contudo pode-se afirmar que Freud inventou o "inconsciente" nesse sentido pelo qual as teorias das demais escolas lida apenas com o conceito de "sub-consciente". Aqui se define a oposição de psicanálise e psicologias, não obstante a origem ser a mesma. 
             As teorias psicológicas são aquelas que explicam a trajetória do desenvolvimento pelo que podemos designar estruturas ou funções somativas. São capacidades que vão emergindo e se juntando construtivamente. As capacidades como "condutas" em Janet ou as estruturas cognitivas de Piaget, por exemplo, são sempre as mesmas que utilizamos na maturação, porém necessitando do tempo certo para somarem a quantidade de capacidades específica do estágio egológico. Por isso elas são "sub-conscientes", de estados alterados ou primitivos relativos à consciência normal do adulto ocidental decorrendo revivescência do correlato do estágio original.  
          Na psicanálise o conceito da criança como "perverso polimorfo", de modo inverso, especifica a trajetória do desenvolvimento por uma série de complexos, erros decorrentes da incapacidade de formar a noção do objeto. Os erros referenciam-se como o que relativamente ao adulto seriam perversões ou neuroses, comportamentos de fundo sexual.  O complexo é sublimado quando o objeto se torna apreensível relativamente à auto-consciência da criança como sujeito. Também por objeto Freud delimita os polos de relação familiar, mãe, irmão, pai, como propriamente investidos de "libido", a energia psíquica sexualizada, a sublimação correspondendo à auto-posição da criança como filho de mãe e de pai, ou irmão. O "inconsciente" é assim propriamente designado porque não corresponde a algo original relativamente ao desempenho normal, isto é, sublimado socializado, das funções do ego consciente. 
             A teoria psicanalítica explica o desenvolvimento como fases da libido. Esta sendo inata, a organização gradual de circuitos de estímulo e resposta, que possibilitam ("facilitam") o perceptível, seriam mediadas mentalmente, mas nesse sentido erótico pulsional. Perceptíveis não "facilitados" por circuitos mnésicos inconsciente e primariamente constituídos não são percebidos. Nesse sentido a psicanálise tem em comum com conceitos psicológicos não behavioristas a descoberta de que inicialmente a criança está centrada nos impulsos da boca, depois, numa "fase de birra" como se designa, está relacionada ao ânus, conforme a educação sanitária poderia fazer crer. 
            Mas só na psicanálise estas  duas fases iniciais e seus polos físicos são sexualizados, de modo a ser exclusivamente conceito psicanalítico  a "fase genital", quando a criança percebe seu sexo, correspondendo ao complexo de Édipo (classicamente o menino apaixonado pela mãe, rivalizando com o pai para ser igual a ele), ao penisneid (inveja do pênis, a menina descobre que o clitóris é vaginal quando antes pensava ser igual ao pênis), e ao complexo de castração (descoberta de que o sexo da mãe é desigual ao do pai, assim parecendo ser a mãe "castrada"). 
        Entre as fases anal e genital foi proposta uma fase fálica que corresponderia à vontade de saber, pela qual a criança começa a indagar sobre o sexo, a qual conduz ao "complexo de castração". Essa descoberta de como realmente ocorre a gravidez é decepcionante para a criança, pois seria universal que ela acreditasse ser pelo ânus, devido à sua fantasia homossexual originária. 
          O interesse sexual da criança arrefece quando se torna assim auto-consciente, com a "mãe fálica" sendo doravante o conteúdo do desejo inconsciente. O interesse retorna com a adolescência, quando o desempenho sentimental da personalidade normal irá revelar que tudo correu bem nas fases infantis. Como há aí um critério do normal,  muito se conjecturou a propósito de convergências entre o diagnóstico de normalidade de escolas psicológicas e psicanalítica como especialmente no caso de Piaget.
           A clínica psicanalítica seria pois, em todo caso, útil na constatação de alterações do desempenho normal. Só ela porém tratando-as como distúrbios encobertos da sexualidade, mesmo que não sejam aparentes nesse status, mas se manifestem como tiques nervosos, neuroses, incapacidades, etc. Seriam "retorno do recalcado", o que não ficou de todo inconsciente por ter resistido a sublimação decorrente da repressão interna ao que na experiência da educação familiar a criança constatou ser inaceitável aos que ela ama. O censurado inconsciente é o conteúdo libidinal. Na clínica psicanalítica supõe-se que a cura sobrevém pelo "transfert" (transferência), quando o paciente revive com o psicoterapeuta a situação problemática, atribuindo a ele a posição do pai ou da mãe como polo da situação traumática. 
          Como clínica, não obstante o interesse teórico por convergências, as relações de psicanálise e psicologias são obviamente de competição, havendo intensa crítica anti-psicanalítica especialmente por parte do behaviorismo - que hoje porém se tornou algo desusado devido à ênfase na linguagem, um elemento evidentemente "mental" entre estímulo e resposta. Na clínica behaviorista tenta-se remodelar o comportamento, de modo a fazer cessar o desvio, na psicanálise considera-se que só se o problema inconsciente for resolvido é que se pode considerar cessado o desvio, ou apenas se manifestaria sob outro aspecto. 
             Na atualidade, uma vez que a castração opera as possibilidades inconscientes de se lidar com as diferenças na realidade, mesmo sem ser obviamente uma "capacidade" no sentido "psicológico" que acima especificamos, mas sim uma função da libido inconsciente, ela vem sendo foco de teorias políticas que lidam com as tradições de desigualdade social, isto é, com o habitualmente designado "ideologia". Isso decorre especialmente da contribuição de Lacan. 
      Na história da psicanálise houve várias contribuições pós-freudianas, mas como vemos o referencial lacaniano se dotou de importância proeminente na história das ideias. A relação do platonismo e aristotelismo lacaniano com a renovação da crítica ideológica que ele possibilitou, torna muito precipitado considera-lo apenas um metafísico ingênuo na era da mais acerba crítica aos idealismos do poder. Estações numa trajetória desenvolvimentista, o saber da metafísica à ciência dominante se torna apenas o correlato da ultrapassagem da fantasia dessa dominação. As relações de psicanálise e psicologia, que vimos ser de irredutibilidade, porém podendo haver convergências, em Lacan se tornam críticas de aparatos de poder oriundos da própria ciência, havendo maior oposição à psicologia. 
         A complexidade do pensamento lacaniano se torna assim bem nítida, o que devemos examinar conforme nosso interesse na história dos movimentos psicanalíticos e psicológicos que tem sido importantes como referenciais na história das ideias.   

   b) A Teoria da Cultura 

          Quanto a uma teoria da cultura psicanalítica, seria importante retornar agora às máximas consequências da junção, ao mesmo tempo que fundadora, jamais esclarecida quanto ao seu modus operandi, entre clínica psicopatológica e ciência social antropológica, esta que se encarrega da observação e conceito da heterogeneidade das culturas no tempo e no espaço. 
           Vimos como Freud expressa ambiguidades notáveis a propósito. O caráter rasurado da temática chega a ponto de se negar que a psicanálise tenha qualquer relação com a sociedade, por ser clínica e terapêutica exclusivamente de sujeitos. Porém sem que assim se pudesse conceituar os empreendimentos teóricos-sociais psicanalíticos de Roheim e as incursões do próprio Freud em Totem e Tabu e outros escritos em que a pressuposição recíproca de ontogênese (desenvolvimento individual) e filogênese (desenvolvimento da espécie) é explicitamente definida como a base da teoria. Nessa pressuposição, os sujeitos utilizariam positivamente, em caso de desajustamento a situação, esquemas já uma vez empregados pela espécie. 
           A explicação freudiana de  um déspota originário que se torna o totem da tribo depois do parricídio dos irmãos, não tem aplicação séria na antropologia, mas tornou-se considerada uma espécie de instrumento heurístico, um meio de figurar o surgimento do despotismo na história, relacionado ao complexo de Édipo.     
      A propósito da pretensão psicanalítica antropológica, expressa-se Pierre Kauffman, na História da filosofia organizada por Chatelet. Defendendo-a e citando Freud, aduz que “a psicanálise está em condições de lançar luz sobre 'as origens de nossas grandes instituições culturais: religião, ética, direito, filosofia'. Ela é capaz disso na medida em que restabelece seguindo seus traços (nachspurt), as situações psíquicas primitivas, que deram impulso a tais criações”. 
           Na colocação de Kauffman, é a segunda teoria de Freud que fundamenta epistemologicamente essa pretensão psicanalítica de ser a única autêntica “teoria da cultura”. Assim como seria também a mola da transferência. Ambas as situações, tanto a relação ontofilogenética como a transferência ao psicanalista do rapport libidinal que está na origem do complexo do paciente, são situações definíveis como repetições, assim o instinto destrutivo ou agressividade seria operante na transição da unidade narcísica original à polaridade do Eu e do Outro. 
          Por outro lado, quando se trata da esfera da cultura, é definida como a castração, ou seja, a estabilização definitiva da polaridade. Não obstante, uma vez que na polaridade o que se estabelece é apenas a hiância entre o eu e o outro, a instituição desenvolvida induz à angústia por um lado, por que se desfaz todo desdobramento que na história vinha se presentificando, daquele Outro primordial em quem o primitivo depositara a crença totêmica. Mas assim vem a ter a instituição o papel de restabelecer a segurança, por outro lado. Conforme Kauffman: “Aos momentos sucessivos da crença, corresponderão as posições sucessivas da 'verdade histórica'. Portanto, mitos, religião, direito, são substitutivos da caução de que o infans estava imediatamente assegurado pela crença infantil em sua onipotência.” (p. 53)
         A posição epistemológica é esclarecida, pois no Édipo originário, o parricídio originário instaura a posição da ausência como capacitação ao exercício do poder classificatório. A posição do ausente permite pois a irrupção do “pensamento abstrato”, assim como também o estabelecimento do “elo social”. 
           Kauffman observa que o paralelismo entre a situação infantil, a neurose ou psicose, e o mito primitivo em que nações inteiras estacionam  pré-científicas, se rompe, contudo, por isso que em cada uma das três instâncias o significado da mesma coisa produz efeitos irredutíveis. É o mesmo totem, no neurótico e no primitivo, porém naquele sanciona a deserção do social, neste, pelo contrário, é o ato da socialização em si. 
         Quanto à criança, vimos que Freud designou o “perverso polimorfo”, que apresenta num continuum todos os comportamentos que se não superados, fixam-se, cada um deles, como uma perversão definível. Ora, o perverso polimorfo que é o infans, ao idealizar um totempassa ao ato por sua própria conta”, conforme Kauffman, mas “o hominídeo só promove o totem enquanto partícipe do assassinato coletivo. E nisto consiste a realidade histórica, o estatuto acontecimental, emprestado por Freud a este ato”. Já a criança não se define neurótica, uma vez que seus comportamentos perversos são estritamente subjetivos e situados num momento componente de um continuun onde a perversão só comparece para ultrapassar-se rumo a normalidade. 
             As correntes pós-freudianas no interior da pesquisa psicanalítica prosseguiram desde Klein e Lacan como os mais célebres até contribuições menos conhecidas ou mesmo anônimas que se incorporam às possibilidades terapêuticas.
          Já vimos que contra-psicanálises exaltadoras dos instintos livres como se pudessem desenvolver formas alternativas à sociedade coexistiram nas correntes artísticas de vanguarda, e assim também Marcuse, como teórico pós-freudiano porém nessa linha questionadora, se expressou.
          Um movimento na psicologia designado "culturalismo" ocorreu paralelamente, com psicólogos que aproveitando concepções de Freud, não concordaram com algumas teses definíveis dele, como sobre se as fases iniciais são de fato determinantes da personalidade ou se fases ulteriores são também importantes, ou se a sexualidade é o fator básico da psique. Marcuse criticou o culturalismo devido ao aspecto dessexualizante da teoria. Kretch e Cruthifield no seu "elementos de psicologia" resenham no capítulo sobre teorias da personalidade, as teorias dos culturalistas, mostrando sua relação questionadora com as ideias de Freud.  Porém agregam aí também  teorias de psicólogos humanistas a exemplo de Maslow.
        Em comum, os culturalistas como Harry Stack  Sullivan, K. Horney e outros, tem a rejeição do Édipo como algo universal, inversamente ao que se relaciona apenas à cultura ocidental, de modo que as demais sociedades não seriam redutíveis a fases anteriores da mesma trajetória edipiana. Porém cada um deles desenvolveu teorias próprias, como a angústia básica de Horney, ou  o que considero particularmente interessante como a ênfase de Sullivan na pré-adolescência conceituado período decisivo em termos de personalidade.
        Quanto à vedete da psicologia de mercado atual, a designada "analogia computacional" pelo que se tenta apreender processos da mente por uso do computador, a premissa pela qual computador e cérebro tem funcionamentos homólogos ou ao menos análogos, como por exemplo defendida aguerridamente por Simon, teve mais repercussão nas décadas anteriores aos anos noventa. De fato analogia pode ser um instrumento de prospecção porém não sendo "científico", pelo caráter arbitrário. Se bem que desde então emergiu também um ramo de especulação designado "filosofia da mente" que se ocupa da premissa colocando-a em questão, com referenciais importantes a exemplo de Donald Davidson ou Dreyfuss. 
         Mas desde os anos noventa e especialmente na atualidade, profissionais de várias áreas como o neurobiólogo Changeaux, o matemático A. Connes, o ciberneticista Von Foester, contribuíram na afirmação da impossibilidade de reduzir o cérebro aos computadores devido à muito maior complexidade cerebral. Por esse motivo os computadores não são capazes de criação, mesmo em matemáticas - até aí físicos como Ruelle acreditavam que seriam nas matemáticas mesmo se não na física, que lida com a experiência do mundo real. Aqui o inconsciente tem sido designado como referencial da "incubação"  como uma fase na resolução de um problema, na qual a pessoa não percebe o que está pensando, mas depois ocorre uma descoberta. 
          Lacan teria o que contribuir nessa controvérsia, de um modo mais decisivo a meu ver, por sua oposição psicanalítica entre o signo puramente denotativo, como as palavras apenas dispostas na página, e o significante, as mesmas palavras porém correlatas da leitura de um sujeito. O termo "significante" vem de Saussure, o linguista que em princípios do século XX introduziu a cientificidade na matéria conforme o seu conceito de "langue" e a especificação do "signo" como articulação de significante e significado. O significante é o suporte material,  como na palavra o som ou a imagem gráfica, o significado é o conceito, a denotação da palavra. Este significante Lacan reconceituou em sentido psicanalítico na sua fase estruturalista. O significante como as impressões e afecções se torna o Outro inconsciente, cujo correlato é então o Sujeito. O significante é relacionado ao pai (falo).  O Outro sendo, como o significante linguístico, o que implica a lei (da linguagem). 
         Conforme Lacan, o  significante linguístico se opõe ao signo nesse sentido pelo qual só o significante vem a ser o que é na leitura, assim como na interpretação qualquer, como numa conversa ou mesmo um lembrança, uma vez que se define como o que provoca um "efeito sujeito", aquele pelo qual a pessoa é afetada pessoalmente na presença de um signo. É evidente que um computador só lida com signos, no sentido dessa oposição, assim o computador não se torna Sujeito. 
        Podemos conjecturar também que a afetação consciente na presença dos signos linguísticos repercute na libido inconsciente relacionada a qual estão os comportamentos corporificados e seu sentido situado que são irredutíveis à situação do computador isenta de riscos, conquistas, etc., como possibilidades da interação com o mundo real. Toda informação que temos, mesmo de sensações próprias, são assim significantes. Evidentemente desse modo o computador jamais poderá simular o ato de sentido humano.  
          A meu ver o mais pertinente argumento, após a oposição lançada por Lacan entre  signo e significante, seria um que mostrasse a impossibilidade do computador integrar um mundo histórico. Assim quando Simon sugeria que algum dia um computador poderia ser programado para escrever um livro tão bom como os de Proust, a questão seria o que é "bom" como critério literário. Pois numa época altamente esteticista Proust criou algo considerado bom, mas nada parecido é o correlato realista da  "Cabana do Pai Tomás", cuja mesma atribuição do bom  está na relação com a época de intensa movimentação política em torno do abolicionismo. Um computador não teria como apreender a atualidade  de algo tão complexo como a literatura, que envolve na historicidade a forma tanto como o conteúdo.
        Alguns alardeiam hoje que um computador já foi programado para produzir textos "aleatórios", de modo que estas pessoas consideram que assim estaria o computador produzindo textos pós-modernos. Porém estão muito defasadas quanto ao sentido de pós-modernismo literário, que muito inversamente ao aleatório, implica justamente um tipo de relação textual enfatizada entre o literário e a História. Não há de fato muito destaque ao "aleatório" como conceito de época na crítica literária, uma vez que a quebra da sintaxe no modernismo era estritamente calculada para reproduzir certos imperativos que o artista considerava genético da linguagem,  assim "aleatório" parecendo mais algo relacionado ao efeito da sobreposição  de informações característico da comunicação de massas. 
        Entretanto não se desconhece que continua a haver pesquisa na analogia computacional, o instrumento informático é amplamente utilizado na pesquisa científica em geral e medicina em particular, assim como antes aparelhos de televisão ou outros reprodutores de imagens eletrônicos, e alguns psicólogos sugerem programas de computador que podem ter funções terapêuticas ou estimuladoras das aptidões dos seres humanos. Porém no Brasil tem havido menos divulgação sobre os resultados da analogia computacional do que costumava haver quanto à psicologia científica. 

   
         IV   Lacan, Psicologia e psicanálise I

                 Com relação a Levi Strauss, introdutor da metodologia estruturalista a qual Lacan se convertera oportunamente, ele assim estabelece no Seminário de 1964, a transformação que permite operar. "É essa estrutura, afirmada como inicial do inconsciente, nos tempos históricos em que estamos da formação de uma ciência, de uma ciência que se pode qualificar de humana, mas que é preciso distinguir de toda psicossociologia. De uma ciência cujo modelo é o jogo combinatório que a linguística nos permite atingir num certo campo, operando na sua espontaneidade e tão somente, de uma maneira pré-subjetiva, é esse campo que faz, em nossos dias, seu estatuto ao inconsciente. É ele, em todo caso, que nos assegura que há algo de qualificável sob esse termos que é seguramente acessível de um modo totalmente objetivável". 
           Mais do que qualificando o inconsciente e tornando-o objetivável, “essa estrutura” é o “sólido apoio” da ciência em se fazendo – para assim parafrasear Molles, e fazer notar que a tradução brasileira corta injustificadamente trechos inteiros, sobretudo omite o estilo subjetivado da fala de Lacan, sempre introduzindo-se por expressões como “para mim”, “me parece”, “eu creio que”, etc., as quais não constam na tradução, assim como todos os meios pelos quais ele subjetiva sua fala. Sintomaticamente, a tradução cortou assim a frase na qual Lacan afirma tratar-se de “une saine aperception de ce qu’il em est réellement du sujet humain” (“uma sã apercepção do que é realmente o sujeito humano”), ali onde, na aula inicial, trata-se do parágrafo em que Lacan o estabelece por relação não a um si mesmo, mas ao objeto – e eis onde Lacan define “o elemento do cômico”. Também nesse trecho o tradutor de Lacan distorceu o sentido, pois não utilizou o termo original, que grifei, na frase “C’est là une expérience dont, sans doute, je crois opportun de la pointer, et de là où je puis en témoigner.” Não se trata pois, de “dimensão”. Com efeito, a questão conduzida por Lacan sobre a cientificidade da psicanálise, está endereçada como interrogação sobre a natureza da “praxis” psicanalítica.
             O campo que vulgarmente se trataria como da pesquisa e clínica do inconsciente, se encontrava na ocasião do pronunciamento lacaniano, segundo ele, franqueado além do que Freud pudera conhecer. O campo seria nomeável agora como o do “pensamento selvagem”. A novidade não está na descoberta de que há um “pensamento selvagem”. Freud já havia definido o inconsciente como um bando de primitivos em nossa mente civilizada e desenvolvida, como vimos. A novidade é como o primitivo, com Levi-Strauss, se tornou pensante num sentido não puramente imaginário. O pensamento selvagem, assim como o inconsciente – e desde Freud ambos são o mesmo – se tornam. objetivados a partir da “estrutura classificatória” que Levi-Strauss descobriu subjacente ao totemismo, criticando portanto que haja um “totemismo” como rito comum as várias sociedades tribais. Há apenas, para práticas entretanto muito irredutíveis entre elas, a mesma estrutura que faz o totem expressar relações lógicas que regulam as relações entre grupos, relações estas homólogas às que são atribuídas a seres naturais.
           Comentando um tanto acidamente o teste piagetiano em que as crianças invariavelmente falham na identificação do erro inscrito na mensagem: “tenho três amiguinhos, Paul, Ernest e eu”, Lacan considera as crianças, instaladas como estão na estrutura inicial do inconsciente, ali onde, como Strauss demonstrou, antes que o ego possa se reconhecer, o que ele pode reconhecer como o si já preexiste em si em termos da estrutura classificatória cujos elementos são significantes que estão na natureza. Estrutura pois, da contabilidade e do contável, a crítica a Piaget é que a criança não demonstra que ainda não se reconhece como o eu que pensa por oposição ao que é pensado, como se fosse essa oposição o fundamento da subjetividade madura. O que ela demonstra é o fundamento à Lacan: que se é ela, é ela “que conta” naquilo que é contado. Mas Lacan não parece perceber que esse é o próprio fundamento piagetiano do erro pré-"formal". A criança só pensa colocando-se inerente ao pensado de modo que ela não o distingue de si mesma. 
         Para Lacan, o erro seria significativo dessa verdade que não se define porém como o "egocentrismo" antes do ego, terminologia que Piaget efetivamente utilizou. Mas sim como esse nada antes da contagem, que só a castração pode situar como a (in)-verdade de que alguém é o que conta. Antes do sujeito se auto-perceber como possivelmente acusado, ele já se sabia nessa mesma condição. A situação de derrelicção do excomungado não é assim de todo estranha à essência humana. Ela é integrada pelo ser negociado dos milhares de anônimos pelos poderes públicos, a quem os milhares creem porém estar se endereçando quando se defendem ou se justificam, como se o crime não fosse a negociata mesma contra a privacidade. O fascismo teria adequada definição nesse trecho, como o arbítrio contra os sujeitos, uma vez que por sujeito se entenda o que é independente de já poder seguir as regras ou ainda não.
           Lacan não denega assim a autonomia política do sujeito como creio estar demonstrado. E a situação do sujeito se situa nessa movência, antes ou depois da castração, em todo caso na ausência do si além da linguagem como fantasia de um ser em si. O que a castração deveria desfazer como o nível inicial do incosnciente, para instalar um nível desenvolvido dele, não se define como egocentrismo, mas pela problemática dos objetos da libido que intrometem o outro, como o campo da linguagem, na economia do ser. É interessante que na resenha de Antonio Gomes Pena a propósito do estágio do espelho ("Introdução à história da psicologia contemporânea" p. 128 e segs.), muito bem conceituada como está, não consta a teoria do conhecimento que Lacan introduz relacionada a ele.
         As três fases do estágio do espelho proposta por   Lacan,  são assim resumidas por Gomes: a) o bebê percebe a sua imagem refletida como a de um ser real, e se toma de alegria; b) a criança percebe que a imagem é apenas imagem, assim deixa de ter a preocupação de alcançar ou verificar uma possível presença atrás do espelho; c) a criança identifica a imagem do espelho como dela mesma. A formação da imagem ou esquema corporal é posterior à identificação da imagem especular. Esta é portanto primária, “padrão para todas as identificações posteriores”, e “é em função desse processo de identificação que tem lugar o imaginário”. 
           Ao comentar a extensão das etapas do estágio do espelho à questão da agressividade, Gomes Pena observa corretamente que segundo Lacan, “todas as imagens de castração, esquartejamento ou estripamento que figuram nas imagens arcaicas pertencem à mesma estrutura que define a fantasia do corpo fragmentado ou disperso”, sendo lacunar nos escritos freudianos a formulação do instinto destrutivo como central à noção de agressividade. Já os conceitos lacanianos de imaginário e simbólico – este segundo, as capacidades pragmáticas do raciocínio normal como exercício da linguagem  – servem à clivagem de psicose e neurose. Lacan introduz o conceito de “preclusão”, segundo Pena, para designar a impossibilidade só da primeira atingir a ordem do simbólico. O neurótico, pois, tem acesso ao raciocínio normal, apenas apresentando defasagem relativa ao seu sintoma.
          O que me parece necessário acrescentar inicialmente, é que uma vez a normalidade pragmática em Lacan sendo relacionada à linguagem, e esta à formação edipiana, vemos como a formação do “Sujeito” como um sistema articulado está relacionada ao “Outro”, que é a linguagem enquanto lei performática, imposta como lei do significante, a partir da imago do pai. Os objetos que Lacan define como “a”, mudam, pois, conforme as fases formativas do “ego” a partir do desenvolvimento do Sujeito. Ele as designa funções, e estabelece cinco objetos: visão, audição, oral, anal, genital. Os objetos da libido são exaustivamente explicativos daquilo que vulgarmente se designa “amor”, que prescinde assim de qualquer definição própria. 
            O que desejamos enquanto egos no “outro” é um desses objetos. Porém nos seminários iniciais Lacan afirmava o amor como somente “genital”, com uma definição em termos da capacidade de realmente o amado ser “outro”, assim como nossas relações egológicas serem com outros para nós, em vez dos outros estarem apenas dissimulando um único ser que fixamos libidinalmente (o pai). Os demais comportamentos de objeto pré-genital sendo perversos por se resolverem nesse amor de si mesmo disfarçado no outro. Na definição clássica de Freud o psicótico não chega à formação do objeto, definindo-se a psicose como fixação no narcisismo primário. Por isso Freud não tratava a psicose, o que se tornou possível na clínica psicanalítica desde Klein, que interpretou o objetal desde os primórdios da vida infantil. 
            Também importante é notar que se Lacan parece, pois, ter avançado na teoria da agressividade, ao conceituar o momento em que, frente ao espelho, surge na criança a fantasia de que a figura possa ser desfeita,  é essa “imago” inconsciente da figura despedaçada o que atua nas crises de paranoia e de todo comportamento agressivo. A “imago” inconsciente, segundo ele, comanda, pois, todo o encadeamento psicossomático do comportamento. Algo percebido é associado à imago, despertando a agressividade paranóica. 
           Mas Lacan instala aí a origem da cognição como comportamento inquisitivo, a partir da própria possibilidade da coisa inerte, como a imagem do espelho, disponibilizável ao exame. A origem do saber é pois a paranóia, antes que a vontade de saber na fase fálica venha despertar a atividade perquiritiva. Naquele instante em que a “imago” da figura despedaçada intervem, ocorre um congelamento do visível, suspensão do devir. A cena parada à frente do paranóico, entre a intervenção da “imago” e os comportamentos de acting out que ela vai provocar. A cena parada, o objeto intramundano inerte, é a possibilidade originária do saber científico,o que Lacan designou "desrealização". Este é, pois, platonicamente, oposto ao devir. Eis porque requer uma explicação na gênese do psiquismo e a explicação é pela paranoia.
             Essa solução lacaniana do objeto do saber científico contrário ao devir destoa da formulação psicanalítica clássica do conhecimento como originando-se na curiosidade relativa ao sexo que surge na época da “castração”.  A solução lacaniana é assim bastante platônica. Porém a questão epistemológica nas mudanças introduzidas por Lacan seria mais complicada do que apenas mostrar que ele radicalizou o determinismo, como causalidade psíquica, formalizando-o inteiramente por um construto linear lógico matemático.
             Em meu estudo anterior pude encontrar o que julguei a gênese histórica da oposição do indeterminismo e determinismo, oposição que hoje é crucial a todo campo de saber e praticamente ordenando todos os problemas epistemológicos relevantes. Como já observei, na Grécia Antiga a oposição se determinou a partir do idealismo de Platão como visão contrária à experiência teológico lírica da Tique (a “Fortuna”), representando a "sorte", que depois se transmutou numa concepção sofística materialista da origem natural como acaso e necessidade. 
           O  problema representado pela posição de Lacan vem por isso que a psicanálise é uma assunção determinista da causalidade psíquica. Freud enunciou posições bastante coerentes ao neopositivismo, tendo sido pelo Círculo de Viena considerado o método científico em psicologia, ao lado do behaviorismo. Ainda que o problema da cientificidade da psicologia em si seja de magnitude considerável, não é tanto o que me preocupa aqui. Mas sim notar que na visão freudiana, a ciência objetiva obviamente existia. Na visão de Lacan há uma epistemologia definida, que porém não chega a ser tão simples. 
          A “idealização” seria o conceito definido da epistemologia lacaniana, para além da gênese no estágio do espelho mas a ela relacionada. Corresponde ao momento em que a criança forma o ideal de eu (o pai), e na ambivalência dessa imago paterna, atinge o patamar do eu ideal, ela mesma digna de ser esse filho do seu pai. A “idealização” do pai ao eu, vislumbrada uma vez no estágio do espelho como unidade do corpo próprio, é pois a gênese da conceptualização. Aparentemente temos uma epistemologia idealista que de Lacan, como vimos, remonta a Platão e Aristóteles. 
            A conceptualização já está possibilitada pelo platônico suspender do devir na fase do espelho, mas ela é algo independente, e o que permite em termos de cientificidade é a organização da lógica na linguagem – notadamente, na gênese histórica, a classificação universal das proposições, (Aristotéles). Mas quanto ao sistema psíquico, é ele o único referencial da “causalidade” . Já o seminário de 1964 se tece em torno dessa questão. A causalidade é aí denegada de um modo bem moderno, enquanto instância lógica, à Hume e outros – moderno para toda uma tradição de história da filosofia, na verdade bem antigo, como se lê na resenha ácida de Sexto Empírico a propósito da causa. Porém ela não é denegada por Lacan enquanto modo de expressar o automatismo, a interligação de funcionamentos que definem uma máquina. A causalidade se transforma num mecanicismo. 
          O Eros seria o inconsciente como estrutura, o sistema como máquina, e o interesse de Lacan é tornar o que Freud conceituou como Eros em termos de funcionamento do objeto (a), assim em termos dos objetos da libido.
           Por outro lado, neste seminário de 1964 Lacan referencia precisamente a “Tiquê” como o correlato do Real. Em vários seminários, Lacan trata os deuses gregos como  a parte do Real. Na tríade imaginário, simbólico e Real, este último é o que se relaciona ao corpo efetivo, ao mundo físico. É algo bem estabelecido que na religião naturalista grega antiga os deuses representam pulsões e necessidades instintivas humanas em particular e do ser vivo em geral, assim como forças puramente naturais.
         O objeto da ciência em Lacan é irredutível ao Real, sendo apenas o Simbólico, uma vez que o cognoscível só o é como correlato do sistema. Porém estando relacionado ao Real pela cadeia que inter-relaciona o possível e o impossível. Mais uma vez, de um modo complexo, pois a ciência realmente é impossível, e no entanto ela é causalmente possibilitada como correlato do “automaton” psíquico. Já o Real como o corpo físico, vimos que ele é  modelado comportamentalmente pela causalidade psíquica, mas ninguém poderia ter um conhecimento do próprio corpo não relacionado como ciência.
           O Real como o noumeno kantiano ou mesmo como o conjunto de fenômenos possíveis, é pois o que Lacan designa “Tiquê”, em grego tickhe.  Ele enuncia assim o par “Tiquê” e “Automaton”, como o que engloba o horizonte do pensável, de um modo sui generis, portanto, uma vez que o pensável e o pensamento são possíveis apenas “automaton”, em grego “máquina”, e o indeterminismo é o limite do pensar, o Real mesmo.        
          Ora, a questão principal na psicanálise de Lacan é defender o “automaton”, o Édipo ou sistema do significante no inconsciente, como um encadeamento factual da vida psíquica. Que, assim, envolve o indeterminado de um certo modo – digamos, transcendental, relativamente ao pensável como alteridade independente do pensar. Se há o “automaton”, então há ciência possível, ainda que de um modo que envolva o próprio resultado da ciência como estritamente “simbólico”.
         O transcendental é, ao que me parece, a relação de um sujeito com o objeto possível da ciência. O que o pós-estruturalismo passou a denegar completamente, conservando embora uma concepção do “automaton”. A denegação pós-estrutural está relacionada por um lado, com as possibilidades do “automaton” além da causalidade “psíquica”, como de um Sujeito. Seria inversamente um automaton puro, que poderia criar sistemas independente do edipiano. O indeterminado muda de lado. O resultado não está garantido de antemão. Mas, também, a possibilidade do pós-estruturalismo não é nova. Estabelece alguma continuidade com o momento anterior ao estruturalismo strauss-lacaniano, e podemos até indagar se a crítica lacaniana do “saber” como o fiat da causalidade psíquica – inversamente à fantasia de domínio – não estava já a enveredar o Sujeito na trilha só do possível. 

      Ora, a partir daí o superego, que se desenvolve entre o ideal de eu e o eu ideal, como idealização dessa perfeição que é a marca da nossa frustração mais íntima e essencial, contudo o mecanismo mais profícuo na impulsão erótica – isto é, na terminologia do segundo Freud, impulsão a realizar – é a ilusão ideológica por excelência, como a fantasia metafísica do preenchimento total, o efeito estrutural de uma consciência que não vê o que não “existe” – justamente o Sujeito de que se constitui como o auto-perceptível ego operante pragmático da linguagem. O que existe e é visível, é somente o que na linguagem transita como sentido atribuível. Toda vez que o Sujeito se experimenta, na experiência do desejo real, efetivamente, para ele só pode constituir-se a experiência frustrante.
            Lacan conserva aí o que o pós-estruturalismo já motejava à vontade, a saber, a concepção freudiana do psiquismo como um aparato de conservação da energia, protegido contra a dissipação, assim como o capitalista popupador à Weber, a perversão como sexo diverso do genital sendo destinada a sublimar-se em prol deste, por ser a dissipação irresponsável da energia, como os pobres fazem se ganham dinheiro, segundo a sociologia ocidentalista. Mas Lacan não o faz como seguidor de Hegel, ainda que para este também o desejo seja a marca de um objeto ausente. É nisso que podemos reconhecer o nietzscheísmo comum ao estruturalismo lacaniano e ao pós-estruturalismo.
           Em vez de servir à falta, por um ideal de preenchimento que empurraria o sujeito para o outro lado de sua existência autêntica, assim para o lado da comunicação como da ideologia da suficiência, o “senhor” nietzschiano à Lacan, não prolifera “máquinas” alternativas ao Édipo como no pós-estruturalismo de Derrida ou Deleuze. Ele deveria, ao invés, denunciar a ideologia que primariamente o confunde com os próprios valores existentes. Mas os valores na ideologia não são quaisquer, eles estão sobredeterminados pela “lógica” do preenchimento que é a lei regente da idealização, a identificação dos dois sexos com o falo de modo que um deles (masculino) será excessivo como o poderoso relativamente ao outro (feminino), que como castrado parece carente, conforme o sujeito possa se inscrever na ordem da identidade/fundamento (posse do pênis) ou alteridade/suplemento (feminilidade). Assim explica-se a mais-valia como possibilidade mesma do sentido na psique. 
             Contudo, a história não é tão ruim como parece, posto que a mais-valia impulsionará, conforme previsto por Marx, ao capitalismo que tornará o carente auto-consciente do caráter fantasístico e pervertido do poder. Também para Lacan trata-se da conscientização do proletariado. Um freudo-marxismo que explica a mais valia pelo mais gozar ou objeto a, como crítica portanto mais do que de "ideias distorcidas", seria da ideologia como desejo, visando uma política já não indiferente ao gênero sexual, se tornou marcante na segunda metade do século XX, com desdobramentos importantes na atualidade. Mas hoje a questão já interfere com uma teoria pós-colonial que não consider o capitalismo senão como imperialismo, e já tem que acrescentar à questão do gênero, a problemática da cultura. O projeto pós-estruturalista de tratar as culturas como aparatos sistêmicos mesmo não edipianos mostrou-se insuficiente para apreender o devir histórico. A pós-modernidade origina-se aí, como o que tenho designado a crítica da geo-ego-logia ocidentalista, visando desconstruir a oposição primitivo-civilizado.

           V  Lacan, Psicologia e psicanálise II

                 Já vimos algo da teoria da imagem especular em Lacan. Aqui iremos desenvolver os aportes relacionados, com vistas ao seu papel na história da psicologia. 
         A questão que Lacan coloca nessa problemática, é a relação não natural, impossível de ser biologicamente caracterizada, de ego e superego, mas, também, sua crítica à noção freudiana do "sistema percepção consciência" como adequado ao conceito de ego (p. 110). A explicação da paranoia serve aos motivos da transferência negativa, quando o paciente desenvolve agressividade ao terapeuta, e assim esta imago forma certa insistência da personalidade e também do conhecimento, cuja "estrutura mais geral" como constituição dos atributos da permanência do eu e das coisas, segundo Lacan é irredutível às Gestalen (Formas)do "desejo animal".  
           A permanência tem parentesco com a fixação ou estagnação da  cena do mundo, para um sujeito tomado da reação agressiva. A cisão eu/mundo é impossível no animal, pelo que se compreende (p,  114). A fixação da cena na paranoia da agressividade, Lacan relaciona ao inconsciente. A partir da cisão cria-se pois as possibilidades do conhecimento, enquanto potência plástica ou "polifônica" dos objetos que já não são naturais como o que pertence só à instância do Real, mas sim manipulados e ressignificados pelo Homem. (p. 114) 
              O eu é pois em sua estrutura formal, nesse escrito, o que decorre da organização passional, na qual se inscreve a rivalidade e agreszividade pelo objeto do desejo do outro. Estrutura paranoica comum ao eu e ao conhecimento.
         Lacan parece antecipar a questão das relações entre sociedade e pré-genital, como Marcuse depois vimos propor em termos de mudança induzida. Aqui incide a irredutibilidade entre o eu como estrutura e o Sujeito das ações a que na modernidade se relaciona a autoconsciência da responsabilidade civil (p. 120). Conforme Lacan neste escrito, o eu, portanto, preexiste universalmente ao momento histórico de sua assunção num status civil e teoricamente postulado. Ora, a estrutura narcísica está caracterizada como "irredutível" (p. 121), assim elemento indecomponível a qualquer análise, e nela configura-se a agressividade decorrente desde o que Lacan definiu como a relação com a imago do espelho. Mas ao tema da figura fragmentada, possibilidade que desperta a agressividade duplicando a imagem real íntegra, Lacan reúne na estrutura agressiva do eu narcísico a "frustração libidinal" que é a do eu perante o "outro" enquanto portador da interdição moral. Ou seja, preservando Lacan assim a irredutibilidade do eu como independente formalmente da cultura na qual porém o eu se "transcende a si mesmo numa sublimação normativa".
            Enquanto o componente estrutural da objetivação imaginária, o quaternário lacaniano, o narcisismo egoico comportando o componente da agressividade na imago especular, Lacan considera estar assim transformando o que julgou "a verdadeira aporia da doutrina" freudiana (p. 105) como postulação do instinto destrutivo (p. 104). A transformação é profunda, mas Lacan mantem como na reformulação de Freud, a agressividade destrutiva na imanência da subjetividade.
        Na concepção lacaniana que em 1938 estava ligada à transformação da causalidade da Trieb para o complexo, agora, em 1948, trata-se do cerne do complexo ou "imago", apresentados como "fenômenos mentais a que chamamos imagens". Já não se trata pois, de repetição na acepção biologista que o artigo de Freud situava. Porém a transposição lacaniana só se faz pelo resgate do conceito de "imagem", inicialmente sendo conceito da psicologia associacionista/empirista do século XIX, que foram refutadas por experiências laboratoriais em princípios do século XX. 
            Esses conceitos estavam embutidos na escola de Wundt, que era um ramo independente metodologicamente, caracterizado por um investimento próprio na "introspecção" e, justamente, formação de imagens como componente da produção do pensamento ideativo.
       O esquema associacionista vinha da filosofia, como a abstração aristotélica do universal ("o" cavalo) em vista dos particulares (este, aquele, aquele outro cavalo). Estava relacionado primariamente à escola de psicologia com esse mesmo nome, o "associacionismo" típico do oitocentos, como dos Mill, pai e filho, que depois se prolonga a Bain, Ebbinghauss, Pavlov, Bechterev, Thornidike, Guthrie e outros. 
              O esquema explicativo da intelecção pelo associacionismo clássico era uma tríade: sensações, reunião delas numa imagem mental disponível pela experiência acumulada em um tesouro interior de imagens, tradução da imagem coerente às sensações por um conceito, a ideia intelectiva que na psicologia introspeccionista de Wundt se tornara consolidada conforme o esquema associativo.
           A introspecção era em geral o meio da psicologia antes do laboratório, consistindo na ação de um psicólogo refletindo, como na filosofia, sobre o que seria o processo de sua intelecção. Na história da psicologia é básica a informação do destino dessa epistemologia oitocentista, entretanto, a partir da autonomia metodológica do introspeccionismo de Wundt. Em laboratório, a escola de Wurzburg (Kulpe e Bühler) tentou confirma-la generalizando como primeira a experiência, o ato introspectivo, de modo que em vez do próprio analista eram outros sujeitos que verbalizavam sua introspecção para ele, que iria equacionar os testemunhos como prova do esquema. Porém o que aconteceu para surpresa de todos foi que a prova não foi obtida, mas inversamente constatou-se que os sujeitos não relatavam formação de imagens. Logo a seguir, houve o êxito behaviorista de Watson e Skinner, e já derivando-se da reflexologia de Pavlov, onde a interioridade não tinha papel na condução do comportamento.
         Há certa controvérsia sobre a relação de Wundt com a rejeição do método introspeccionista. Hyman ("Natureza da investigação psicológica" Rio de Janeiro, Zahar, 2973) considera que as verbalizações dos sujeitos de que Wundt visava colher as impressões puramente sensoriais são consideradas metodologia de "introspecção" (p. 14), assim como o uso de testemunhos de "introspeccionistas treinados" (p. 46). Porém Gomes Pena (op. cit., p. 28) considera, ao contrário, que Kulpe e vários outros psicólogos interessados na prova do associacionismo, visavam utilizar o método da verbalização introspectiva também para a obtenção de conceitos, contra a posição metodológica de Wundt, que assim como Kant e Comte, haviam "já descartado" o método de introspecção intelectiva.
           Em todo caso, o resultado, como vimos, mostrou-se oposto à convicção da tendência figurativa na obtenção de conceitos e de modo geral na introspecção mesma como o alvo do ataque do próprio Wundt, que não admitira o resultado dos experimentadores de Wurzburg, considerando-os apenas introspeccionistas.
           Confome Hyman, inversamente, o abandono da introspecção ocorre pela rejeição ao ponto de vista do sujeito, praticada pelo behaviorismo e reflexologia, e pelo fato de que os resultados de Wund e do discípulo dele, Titchener, não coincidirem com os de Wurzburg, não obstante ambos utilizarem-se da mesma metodologia introspectiva (p. 46). Outros historiadores da psicologia não concordam que a introspecção tenha sido de todo abandonada. Para Kresch e Crutchfield ("Elementos de psicologia", São Paulo, Pioneira, 1974, p. 12 e segs), a controvérsia a propósito do pensamento sem imagem ficou "'sem decisão'. Os psicólogos concordaram em que as imagens as vezes estão presentes - mas se interessam por descrições mais tangíveis do comportamento adaptativo". 
          Essa estimativa ao menos não elimina o fato de que a tese associacionista de que a produção de imagens é a priori inerente ao pensamento foi refutada. Piaget, em "Sabedoria e Ilusões da Filosofia" (Col. Pensadores, Piaget, São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 286) também considera, quanto à introspeção, que não houve decisão final, expressando que "o problema da introspecção continua". Na verdade, utiliza-se dele como o ponto crucial da oposição entre psicologias filosófica e científica. 
         A posição de Piaget não é porém tão simples como atribuir a introspecção só à primeira, mas sim considerar que se a introspecção pura é de fato um método apenas filosófico, fértil na indução de resultados errados, pelo contrário, "combinada com o estudo das condutas a introspeção conduz a três espécies de esclarecimentos indispensáveis, sem falar, é claro, na experiência do vivido, fora do qual as condutas são incompreensíveis". Os esclarecimentos são: a) sobre a tomada de consciência do sujeito, o que é particularmente importante nas pesquisas de psicologia infantil; b) sobre a significação dos próprios erros a que a introspeção pode induzir; c) sobre o que revela, como na experiência mesma de Wurzburg e Binet, que mostrou a falsidade da concepção associacionista de que sempre se formam imagens no processo de pensamento. 
            Assim Piaget pôde refutar as acusações à psicologia científica de que ela negligencia a consciência e a subjetividade. Aqui, porém, estamos constatando a persistência de Lacan na defesa da introspecção e formação de imagens. Porém seria preciso ressaltar que sua concessão da psicanálise como metodologia introspectiva controlada pelo movimento do diálogo do analista e seu analisando ("Escritos", op. cit. p. 105), é original, contrastando com a posição de Hyman que a classifica como "método clínico", variante da observação "naturalista" do comportamento (Hyman, op. cit. p. 65, 66). Os dados vem "das observações feitas por um terapeuta, no decurso de entrevistas e tratamento de seus pacientes, relativas a problemas psicológicos". Gomes concorda inteiramente com Hyman, mas por "método clínico" entendendo "que Freud se centraliza no estudo do caso individual e faz da observação seu grande instrumento de trabalho". (op. cit. p. 87)
   Tanto Gomes como Hyman consideram "irremediavelmente afastada a possibilidade de admiti-la como uma teoria científica", não só "nos termos exigidos no campo da física" mas também assumindo-se que "nenhuma das exigências impostas pela metodologia científica é observada pelos que integram o movimento psicanalítico", conforme Gomes. 
          Hyman confirma que a psicanálise "foi e ainda é rejeitada por situar-se fora do âmbito da observação científicas", não obstante Freud e Piaget, a quem se atribui a mesma caracterização metodológica, são "esses dois homens" referenciados como as "duas notáveis figuras" de quem se pode dizer que "a pesquisa psicológica contemporânea está substancialmente influenciada pela obra" (op. cit. p. 68).
     Lacan, ao invés, responde afirmativamente à própria indagação retórica sobre se "podem seus [da psicanálise] resultados fundar uma ciência positiva". E argumentando que a experiência científica "se for controlável por todos". De fato Lacan já substituíra o complexo pela imago como o verdadeiro objeto da psicanálise - depois falará dele como o "objeto a". Por ora observa que o sujeito mesmo analisando se constituiria de um fiel da balança na qualidade de terceiro, "a experiência uma vez consumada", porque podendo retomá-la.
          A relação da Imago com o instinto, porém, coibiria uma assunção precipitada de que o estruturalismo lacaniano é apenas persistência naquela tendência que pelo mesmo nome de "estruturalismo" se designava bem antes como a de Wundt e Titchener. Tanto Hyman como Marx e Hillix ("Sistemas e teorias em psicologia", São Paulo, Cultrix, 1997) não referenciam o estruturalismo como metodologia de Lacan a partir de sua coordenação a Levi-Strauss, e assim na mesma linha o marxismo de Althusser. 
          Ao tratarem elogiosamente de Piaget, Marx e Hillix não o relacionam ao estruturalismo em geral, assim tampouco a este novo estruturalismo, de que porém Piaget é integrante ainda que por vias independentes, como Hyman por exemplo já afirma. Assim procedem os dois autores de modo coerente à sua estranha opinião sobre a psicologia na França, de que neste país ela seria dominada por três autores, Piéron, o único francês, Piaget e Michote, respectivamente um suíço e um belga (p. 626) - está claro que não referenciam Lacan, o principal ramo de influência nas ideias, quando se trata da psicanálise e seus "rebeldes" restritos a Adler, Jung, Rank e Ferenskzi (p. 332 e segs.)
      Essa abordagem de Marx e Hillix  falseia consideravelmente a história, não obstante conservarem boa margem informativa a propósito de outros referenciais de escolas e de culturas nacionais, pois considera que o "estruturalismo" que assim limitam a Wundt e Titchener, feneceu de todo antes do "funcionalismo" despontar em inícios do século XX como um locus estabilizado na psicologia. Assim teria havido a refutação total do que o estruturalismo de Wundt e Titchener significara como o ponto de vista analítico, que privilegia a parte como componente explicativo do todo, ao contrário do funcionalismo que procede pelo todo como significado explicativo da parte. 
            Bem inversamente, não obstante o registro de Marx e Hillix sobre a origem dos termos "estruturalismo" e "funcionalismo" ser do próprio Titchener (p. 201), o "estruturalismo" como metodologia ligada aos referenciais de Piaget e Levi-Strauss sucede ao funcionalismo da primeira metade do século XX, de James, Dewey, Cattel, James Angel, Carr , Woodworth e outros, como tendência dominante afirmada na história da psicologia. Tornando-se o "estruturalismo" de Levi Strauss, Lacan, Althusser, Piaget e outros, assim redefinido, o referencial da segunda metade. O que torna compreensível que Gomes Pena nem mesmo referencie uma escola funcionalista de psicologia.
          Especialmente seria necessário acentuar a influência metodológica de Levi Strauss na sua crítica e reutilização da psicanálise sobre Lacan. A transformação do inconsciente em função do simbólico e a concepção renovada da cultura, agora independente em suas relações com o status da criança e da psicopatologia são obra de Strauss. Nessa reformulação, ao contrário de Piaget, que preservou a homologia de sociedades primitivas e estágios da inteligência infantil anteriores ao formal, como ambos pré-científicos, Strauss operou o deslocamento da síntese freudiana entre o estágio infantil como pré-genital e o estágio cultural pré-civilizado. Inversamente a um "perverso polimorfo", a criança seria um "social polimorfo", seu pensamento sendo uma espécie de denomimador comum de todos os pensamentos e todas as culturas ("Les structures elementaires de la parente", Paris/Haia, Mouton, 1949, p. 110). Nas sociedades selvagens, em compensação, sempre já se trata de cultura determinada, especialização escolhida entre todas as possibilidades pre-existentes.
         Aqui a noção de pre-existência é importante porque mesmo na criança, em vez de indeterminação até criarem-se as condições de compreensão de fatos e assimilação dos sistemas em termos de ajustes e organizações, Strauss concebe a coexistência dos sistemas culturais que estão diferenciados em sociedade etnograficamente definidas, sob um outro tipo de diferenciação que a lógica da exclusão recíproca e também tanto o resultado de vários sistemas como o trânsito constante entre sistemas específicos. É agradável a meu ver, o modo como, assim, as rubricas da pulsão e das instituições sociais são conceituadas. Aquelas são individuais, estas são irredutíveis ao que cada indivíduo sente, por se constituírem como trama de obrigações e restrições sociais.
         A lei do simbólico, isto é, da linguagem como sistema de signos (langue/ parole), atua selecionando as possibilidades de modo que se conjuguem na trama, uma vez que dadas umas, se possibilitam só determinadas outras, não todas, conforme uma combinatória que envolve sua própria coerência. Os símbolos se relacionam entre eles mesmos, sendo a combinatória independente e preeminente com relação ao que cada um simbolizaria. O incesto, em vez de ser originário, seria apenas uma possibilidade irrealizável, enquanto se realizam as alternativas de combinações de parentesco relativamente a ela.

         Essa crítica de Strauss a Freud permite a Lacan reformular a concepção de Totem e Tabu em termos de fantasia constitutiva do sujeito enquanto desejante, na sua relação com o Outro (simbólico/significante/pai). Porém enquanto se tratava da agressividade, Lacan considerava a Imago em sua relação com o instinto, sem atribuir à psicanálise predecessor na psicologia relativamente a essa ideia. A Imago - originariamente o objeto do complexo antes deste se resolver num objeto definido (mãe, irmão, pai) - tem uma relação explicativa com a "função formadora das imagens no sujeito". Para Lacan, a psicologia falhou nessa explicação, mas a psicanálise não, por ter elevado a função a esse status de imaginação inconsciente como vetores efetivos de impulsos ou intenções (op. cit, p. 107) especificados na teoria em termos de recortes dos instintos.
     Assim vemos também que a concepção psicanalítica de "associações livres", com que o analista lida enquanto prospecção dos impulsos inconscientes, é bem irredutível à concepção do associacionismo clássico, pelo qual o correlato da imagem é o fato sensível coordenado ao real perceptível objetivo como seu reflexo na mente. A própria noção de introspecção que Lacan defende, parece algo de natureza oposta ao que se entende por esse termo na escola de Wundt e Titchener, pois nela se trata da relação entre o reflexo sensível e o fato objetivo refletivo, enquanto em Lacan e na psicanálise o sujeito jamais tem o conceito daquilo mesmo de que se trata na sua suposta auto-reflexão. Nela o que está atuando é a censura, e a introspecção é um meio de a burlar para atingir o desejo como algo de inato e primordial.   É certo que os conceitos psicanalíticos do inatismo são hauridos justamente pela escuta clínica do que se revela obliquamente por meio da introspecção subjetiva. Porém desse modo esta já não se define como auto-reflexão, é apenas um meio de se obter informação do Inconsciente cujos esquematismos é que serão explicativos dos conteúdos da suposta introspecção subjetiva como um tipo de comportamento observável. E enquanto as imagens do associacionismo clássico são resíduos do percebido extramental, em Lacan as imago são produtos do inatismo inconsciente.  
              A possibilidade da auto-análise pode ser considerada, mas é excepcional, e subentende os esquematismos já aplicáveis, não sendo a fonte da descoberta. A escolha do Édipo como figura mítica em Freud significou essa restrição essencial. Assim vemos que Freud referenciou com o Édipo, o estatuto de um sujeito cuja relação transgressiv com o saber não se limita à aspiração, segundo a piedosa interdição de que o saber se reserva a Deus. Mas de fato envolve uma censura, a posse desse saber sendo algo vedado, cuja revelação se ocorre seria apenas sem reconhecimento por parte do sujeito como saber mesmo de si. Já o correlato feminino do complexo não é verdadeiro. Freud não concorda com Jung que sugeriu um "complexo de electra", pois não  há no mito de Electra o saber como desconhecimento decorrente da transgressão. O menino tem rivalidade com o pai, a menina, apenas mágoa pela condição "castrada", julgada inferior, da mulher. A rivalidade feminina foi explicada por Klein num outro aporte, o da inveja do seio, assim a mulher que está sempre trocando de parceiro o faz para sentir que está vencendo sucessivas rivais potenciais. Para ela inconscientemente isso significa que está se vingando da mãe por ter tirado o seio, assim sendo fixada a mulher na fase da mudança alimentar do leite ao alimento sólido. Para Lacan essa mudança é o núcleo do "eu", que enfrenta a frustração. Para Klein, o núcleo do eu é a identificação com o seio bom, uma vez tendo o bebê empregado como mecanismo de defesa contra os instintos destrutivos oriundos da relação possessiva com o seio materno, a cisão do seio entre o bom e o mau.  
          A anamnese, em grego "recordação", termo conceitual do platonismo que explica o conhecimento como lembrança pela alma do mundo das ideias puras de onde provem, é o pivô da terapia. O paciente deve recordar-se daquilo em que o inconsciente está fixado. A recordação que  o analista propicia tem certo efeito que é porém ineficaz, enquanto apenas coerente ao plano gnoseológico, sendo essencial a "transferência" que ocorre naquele plano afetivo em que se situa o inconsciente. Como Marx e Hillix salientam, o tipo de crítica que se faz ao método introspectivo do estruturalismo de Titchener e Wundt, como meio de se entender o que ocorre quando se pensa ou se resolve um problema, manifesta, ao invés, a natureza de sua relação com o dado que é puramente cognitivo. Na introspecção observou-se que o esquecimento pode intervir, entre a experiência e a retrospecção verbalizada. Assim vemos que a experiência é suposta como o conteúdo do saber do sujeito, conteúdo que se limita  ao dado.
      Entre Freud e Heideggter, o Édipo é pois personagem bem distinto. Podemos ilustrar o modo como Freud situou o inconsciente e a instância da censura na sua descoberta de um saber inacessível porém do sujeito mesmo, pela sua objeção ao haver de algum complexo de Electra, em se tratando da menina, conforme Jung sugeriu. Como vimos, Freud não poderia divisar na Electra a situação de auto-desconhecimento estruturante do mito do Édipo. O paradoxo deste mito é até que nem se pode decidir se Édipo é culpado ou inocente, se ele de fato não sabia de quem se tratava na pessoa de Laio, não conhecia o próprio pai. Electra sabe todos os pormenores da situação em que se encontra, tem consciência clara de que deseja vingar-se da mãe e  porque deseja, o fato de ter sido escrava pela mãe assassina do pai.
       Para Heidegger, inversamente a Freud, o Édipo Rei de Sófocles é a "forma da existência grega na qual a paixão fundamental dos gregos galga o seu grau mais alto e mais brutal: a paixão de des-vendar o ser". (Introdução à metafísica, op. cit. p. 168 e segs.) Assim também Hoelderlin, segundo Heidegger, atribui a Édipo ter um olho demais, ao invés de ter-se cegado ao compreender-se fautor do crime contra o pai e do coito com a mãe. Heidegger comenta que esse olho a mais é a paixão que constitui o saber e a ciência grega, ou seja, ao que parece o único fator de complexidade aqui está no plano das consequências, não das causas. A relação do saber com o ser é aquela que atravessa o velamento da aparência. Mas o relativismo que Heidegger quisera atribuir à concepção grega e pré-platônica do ser, dependia para ser conceituado tão tardiamente desde a guinada metafísica do platonismo, dessa condição de velamento como aquilo de que estava na dependência a verdade como suspensão. Esta não suprimia nunca algo oculto por estar inscrito na consistência da palavra a-letheia, não-oculto, não-esquecido. O oculto é um outro sentido possível da verdade des-coberta. A polissemia e o relativismo cultural seriam pois a descoberta dos pré-socráticos quanto à verdade.
           Assim quando o platonismo pretendeu instaurar um novo conceito, a verdade como única, objetiva,  mudou a palavra-guia, de aletheia ou verdade para eidos ou idea, a forma ou essência da coisa. O oculto na interpretação de Heidegger permitiu aos gregos atingirem o relativismo porque inscrito na sua palavra para "verdade", implicava que numa verdade algo como outros sentidos permanecia oculto, isto é, as possibilidades de se compreender e utilizar um termo, cuja aplicação não seria independente do "ser", como do contexto, o comportamento situado e assim variável ao extremos do seu uso. A verdade é descobridora e acobertante,  ao mesmo tempo, naquilo que compreende um sentido, deixam os outros possíveis encobertos. Uma verdade que é somente descobridora e nada acobertante, como na metafísica do eidos, traduz um outro tipo de encobrimento, aquele que propriamente é a paralogia - diz-se revelar o "ser" mas só se define um ente.
        O próprio contexto não é necessariamente conscientizado na utilização do termo ao qual pertence e somente o qual lhe permite ter sentido. Na estética da recepção, tratando da literatura onde o texto e o contexto tem que ser construídos explicitamente como a produção estética, utilizou-se o binômio tema e horizonte, este o contexto, mas podendo trocar seus papeis, assim o que está no horizonte como um fator contextual vindo a ser tema, e vice-versa. Em Heidegger parece ser lícito atribuir que o contexto e sua virtual afinidade a uma porção de outros referenciais mas não quaisquer, somente os que se avizinham do mesmo "ser" como mesma "experiência" histórica e comunitária, não são conscientizados por serem a consciência (Gewissen) dos significados na cultura, a consciência moral em si mesma, ou seja, não apenas o que é bom ou potente como o agathon platônico ou a vontade nietzschiana, mas o que vigora na acepção de ser atribuível comunitariamente, o comunitário aí sendo o que para alguém tem sentido, sendo alguém pre-sença sempre já, mesmo interiormente, situada num mundo histórico-social, temporalizante e espacializado de certa maneira. Este mundo de sentido precede a presença tornando-a algo existencial, inversamente a algo como uma coisa. 
           A dependência do termo/signo ao consenso é bem correlato, como vimos, da técnica de associações livres freudiana. A propósito, Freud considera que a linguagem na acepção da língua (parole) habita o pré-consciente, e é este que na análise faria a ponte do inconsciente à revelação do signo recalcado mas sintomático, pelo retorno na forma do sintoma. Assim, na associação livre, em que o analisando verbaliza o que lhe vem à mente, o pré-consciente estaria trazendo à autoconsciência pistas do signo inconsciente, enquanto acontecimento definido como traumático por suas repercussões no percurso da formação infantil conforme a personalidade do sujeito - não necessariamente pela natureza própria do acontecimento.
         Lacan redefine, neste texto que estamos examinando, a concepção da transferência, assim interferindo com essa noção freudiana. Ao ver de Lacan, o que ocorre na psicanálise só tem lugar porque o psicanalista incorpora o papel da neutralidade especular como intelecto ideal. Assim a transferência negativa, onde a imago sádica do analisando é atuada contra o analista/espelho, é salutar na análise quando bem dirigida, porém sendo fator de angústia se inversamente, o analisando se identifica com o analista ou faz dele o seu duplo. Vemos que o inconsciente e a verbalização não são o principal, nem necessariamente se reduzem a um só, ainda que a imago seja de natureza inconsciente.

          A irredutibilidade do estruturalismo lacaniano ao que se designava "estruturalismo" atribuível a Wundt em princípios do século XX, pode ser demarcada por isso que nem mesmo seria já suficiente estabelecer um equivalente dos instintos de Freud às sensações de Titchener, como de qualquer modo os elemento residuais de que se comporia a consciência e que a análise teria a revelar. Conforme Marx e Hillix, se Titchener nunca negou a consciência como seu objeto de estudo, no momento em afirmou a sensação como o elemento de composição estabelecido, "levou a uma designação alternativa para a escola: existencialismo" (p. 179). Se esta designação, como é evidente, não tem o mesmo significado da famosa corrente de pensamento associada a Heidegger e Sartre, ela também não seria aplicável à psicanálise de modo algum. Pois, independente da variação contextual que poderia unir as concepções de linguagem ou verdade, de Heidegger e Freud, somente neste segundo há uma chave geral da contextualização, universal necessário da mente como o complexo de Édipo, esteja já realizado como no Ocidente contemporâneo da ciência emancipada, ou por realizar como nas sociedades pré-científicas, pré-letradas, etc. Freud atribuía a pessoas iletradas, os pobres, presença comum de perversões, que só a educação sublima. Não considerava particularmente útil a psicanálise de pessoas pobres, pois individualmente apenas teriam maior consciência da situação própria. Considerava o marxismo uma possibilidade de melhoria social mas que havia se limitado apenas a um culto  da personalidade, repetindo pois o recurso paternalista do religioso, se bem que a religião mesma pode ser benéfica como um modo da pessoa se engajar na superação das perversões e confiar em algo. 
         Lacan, inversamente, induz a transformar o conceito de politização a partir da premissa do inconsciente. Assim somente se evitaria o resultado habitual dos governos de esquerda apenas inverterem a hierarquia do poder, a desigualdade já instituída pelos governos direitistas, como já vinha ocorrendo na União Soviética. Quando o desejável é a democracia ou forma de governo que testemunha a sublimação dos instintos destrutivos assim como o sadismo que a eles se associa. 
       É interessante observar como o próprio Freud estava a meio caminho entre as metodologias funcionalista do passado e estruturalista atual. Assim como afirma o estruturalismo atual, especialmente de Piaget, o inatismo das estruturas inconscientes, afetivas para Freud e cognitivas para Piaget, é de um tipo peculiar, porque não se consubstancia como dado imediato da consciência ou a priori. As estruturas pré-existem na mente, mas tem que ser ativadas na experiência para poderem emergir, e elas não emergem todas ao mesmo tempo, necessitam um escalonamento progressivo.
          Mas a teoria freudiana original tem aspectos afins ao funcionalismo, de modo que funções inatas como a amamentação, a educação sanitária, a conscientização dos genitais,  ligadas a situações efetivas como o nascimento, a nova gravidez da mãe e o irmaõzinho, o estreitamento das relações com o pai, seriam o estofo da libido. As funções se realizam de qualquer modo, conforme modelos prefixados ou inventiva,  a variação da personalidade seria coerente com a singularidade biográfica dos sujeitos. Tanto que o convite a Freud para ir aos Estados Unidos apresentando conferência na Universidade Clark em 1909, assim como a Jung e Ferenczi, foi feito por Stanley Hall, de quem Melvin Marx e William Hillix anotaram que "embora não contribuísse formalmente para o estabelecimento do funcionalismo, as suas contribuições tiveram um evidente sabor funcional mesmo antes de existir uma escola funcionalista" (op. cit. p. 196). Ou ao menos antes do estruturalismo piagetiano a originalidade da teoria dos instintos interligada ao complexo de Édipo poderia ser interpretada como definição de funções primárias integradas numa perspectiva organísmica, isto é, relativa ao comportamento do organismo como um todo.
           Esse modo de ver parece ter sido desenvolvido na psicanálise mesma, pela escola inglesa, como Lacan pode exemplificar em seu artigo "À memória de Ernest Jones", em "Escritos". Lacan não define aí propriamente o viés metodológico funcional, mas creio subentender-se.
           Ele elogia Jones por ter sabido evitar o erro de Jung, a saber, considerar que a libido mesma é simbolizada pelo inconsciente, como no caso de um sonho em que o braço é visto como serpente. Jones considerou acertadamente que a libido só é idealizada num alto grau de abstração, não sendo portanto o caso do processo primário, como o sonho, em que o simbolizado são apenas os objetos da libido, nesse exemplo, o falo (op. cit. p. 708 e segs.). Ora, antes de Lacan, como vemos relatado no artigo (p. 710), Jones já havia relacionado a metáfora ao que Freud designava como processos associativos do inconsciente expressos na composição onírica. Para Freud essa forma de expressão é a mesma da neurose. Assim, em "Duas mentiras infantis", ele analisa o caso de uma garota que mentiu a uma amiguinha quando esta lhe disse que sua família tivera sorvete no jantar, respondendo que em casa a família dela tinha sorvete todos os dias. Essa menina nem sabia o que era sorvete - apenas o significado da palavra alemã para sorvete que porém significa também "gelo" - mas imaginou que devia ser algo mais intrincado do que gelo, e replicou desse modo. Outra mentira da menina é analisada, quando ela desenha um círculo com um compasso para gabar-se que o fez perfeito, mas quando lhe replicam que usou o instrumento obstina-se na versão de que o fizera a mão livre. Freud mostra que ambas as mentiras estavam ligadas a uma tentativa de valorizar o pai, que era desenhista, visto que a menina tinha uma afeição demasiada a ele e queria protegê-lo de críticas, de fato ele não sendo tão rico ou poderoso como ela o idealizava. Como as carências do pai foram ficando mais evidentes, ela se tornou neurótica. Por conta disso, quando mais tarde ela aprendeu a traduzir "sorvete no almoço" por "glace", a censura por essa reminiscência resultou num temor neurótico por pedaços e estilhaços de vidro ("Glas" em alemão). Os sonhos utilizariam recursos semelhantes .
       Lacan atribuiu mais tarde, o que Freud designara "condensações" à metáfora e "deslocamentos" à metonímia, ensinando que esta última é a primordial, componente da constituição daquela. Mas sua crítica a Jones se justifica pelo fato de antes já Jones ter designado "metáfora" ao processo de simbolização do sonho. Contudo, ao contrário de Lacan, Jones pensa a metáfora, ainda que não simples figura de estilo mas conforme ao processo primário de simbolização, como um deslocamento, suposto lei dos tropos, que seriam sempre do mais concreto ao mais sutil. 
           Ora, para Jones o simbolismo se faz desde certa base que seriam de "ideias primárias" , o que a meu ver correspondem a funções. Conforme Lacan, ideias de si mesmo e dos parentes imediatamente consanguíneos, e os fenômenos básicos como  nascimento,  amor,  finitude. (p.711)
          Lacan refuta essa concepção funcionalista mostrando, precisamente, que ela impede o acesso ao aporte estruturalista (p. 715). Quanto a este, baseia-se ao contrário, na concepção do livre jogo do significante como a mola e o componente mesmo da simbolização, que apenas tem por pretexto os complexos do imaginário, mas não sendo causado propriamente por eles. Ao ver de Lacan, o erro de Jones quanto  à metáfora pode ser divisado pelo próprio fato de que as ideias supostas primárias já supõem um sujeito constituído como tal.
         Que a teoria dos instintos, pulsões ou "impulsos",  por si só mostra-se compatível com o funcionalismo, vemos por isso que Woodworth, conforme Hillix e Marx, considerou-os componentes básicos do comportamento em conjunção aos mecanismos definidos como respostas ou conjuntos de respostas intencionais (op. cit. p. 210). As reações são classificadas, como as que preparam e as que consumam o ato, por exemplo, respectivamente, os atos de abrir a boca e engolir. Mas para Woodworth, a relação de instinto e mecanismo pode ser invertida. Se os impulsos são processos internos que ativam mecanismos, os mecanismos como modos de comportamento manifesto pelos quais os impulsos são satisfeitos, pode converter-se em impulsos. Até mesmo afirma que todos os mecanismos podem se converter em impulsos, o que também considerou Alport segundo a teoria da "autonomia funcional dos motivos". Esse é um modo de pensar bem funcionalista, expresso na introdução da variável organísmica ao esquema único de associação entre estímulo e resposta que define o behaviorismo fundado por Watson e aperfeiçoado por Skinner. Conforme Hillix e Marx, de fato Woodworth escrevia "E-O-R" (estímulo, organismo resposta), em vez do ER do behaviorismo clássico. Enquanto demais historiadores atribuem apenas a Pavlov e eventualmente Comte como as influências de Watson, o que é bem coerente com sua rejeição à teoria, seu empirismo fervoroso e sua restrição aos dois fatores objetivos do comportamento, Hillix e Marx sugerem que a história é mais complexa, e localizam o funcionalismo como uma influência importante de Watson. Na verdade este poderia ser um fator de instigação na prospecção histórica quanto ao significado de "comportamento". Para Dewey, por exemplo, é algo tão relacionado à função ou reflexo total, que a distinção de estímulo e resposta seria artificial, uma abstração conveniente, pois a resposta já deve estar antes do estímulo para configurarmos a este enquanto tal (p. 199). Para Freud ("Os instintos e seus destinos"), instinto ou impulso é um estímulo interno, não diferente em substância, dos estímulos externos, apenas segundo a proveniência. Para Woodworth os processos impulsivos internos são eles mesmos tipos de respostas. (p. 210) Em todo caso, os impulsos se tornaram uma base comum à psicanálise e psicologia, a que tudo pode ser reduzido, como no construto do "drive", significando impulso, de Tolman e especialmente Hull, pelo qual o organismo somente age para redução (saciação) de "drives" (Pena, op. cit. p. 44), tese que é a mesma de Freud, somente que neste há uma natureza da libido, atuando também mecanismos de censura e culpa, definindo-se  quatro destinos possíveis dos instintos: repressão, sublimação, voltar-se contra a pessoa (querer destruir, sentir-se culpado), transformar-se no contrário (como entre voyerismo e exibicionismo). 
         O termo "drive" é em inglês a tradução do "trieb" alemão. O construto implica a inclusão da variável "o" organísmoca mesmo no behaviorismo, que foi a contribuição de Hull a esta escola assim já não a clássica de Watson-Skinner.
          Se os impulsos que estão na base do processo primário em Freud podem ser vistos em relação com funções integrais, ao que parece, a reversibilidade entre primário e contextual pode ser pensada. Como a conversão de tema e horizonte na estética da recepção, relacionada à psicologia "humanista" influenciada pela fenomenologia de Husserl e existencialismo de Heidegger, mas também no pós - ou mais propriamente - neo-estruturalismo, em que não há fronteira precisa entre o "socius" e o inconsciente. Conforme o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, sendo ambos do mesmo modo semiotização dos impulsos na base dos comportamentos vitalmente integrados ao meio, e homogeneizados pela noção marxista de produção econômica. Estes autores se colocaram como simpatizantes de Jung, ainda que não seguindo-o na concepção de "arquétipos".
         Em seu escrito sobre Jones, assim demarcando a posição da corrente estruturalista porém, Lacan definiu uma estrita oposição de psicologia e psicanálise. Uma vez que o simbolismo psicanalítico não pode ser traduzido pelo próprio sujeito que o engendra, nem o seu significado é a subjetividade, mas o sistema inconsciente linguagem,  ainda que fosse a libido , "noção energética", conforme Lacan "essa é também a prova de que não há compromisso possível com a psicologia, e de que, a admitirmos que a alma conheça, com um conhecimento anímico, isto é, imediato sua própria estrutura..." nada permitiria "separar o pensamento do devaneio das 'núpcias químicas" (p. 708). Isto é, da alquimia, cujo a priori, como obstáculo epistemológico à química científica, Bachelard definiria como a antropomorfização possível dos elementos, a representação das relações entre eles como relações intersubjetivas, especialmente a repulsão como o guerra, a atração como o casamento, etc. Realmente porém a alquimia mostrou-se fecunda como uma concepção de ciência que não se define apenas pela carência de objetividade típica de tempos passados dominados pelo idealismo e a religiosidade. Pois concebe positivamente o existente em termos transmutatórios, assim desenvolvendo-se como vertente não necessariamente metafísica, mas de cunho heraclíteo, em ramos de investigação e produção cultural posteriores aos limites da Antiguidade. A influência da alquimia na psicologia de Jung é apenas um dos exemplos de sua aptidão a adaptar-se ao presente, assim influencia também a poesia e processos de redefinição das relações do homem com a ciência, o que é o cerne de sua produção. 
         Também podemos considerar que Lacan permaneceu aquém da crítica de Derrida, em seu "Mitologia Branca", ao conceito de metáfora como metafísico, definido aristotelicamente por simples oposição ao sentido literal - do mesmo modo que na oposição de poesia ("retórica") e ciência ("lógica"). Assim conservando o mesmo problema para toda a oposição conceitualmente fundadora dos termos mas ao mesmo tempo supondo um dos polos essencial em detrimento do outro. Na verdade parece ser esse problema o que Lacan antecipa, ao negar a concepção de Jones da metáfora como comparação - o que supõe que no inconsciente já estão previamente os termos a comparar, sendo, ao contrário, o movimento metafórico do significante que os cria. E ao definir a metáfora em termos de livre jogo do significante, sem necessidade de um correlato prévio de sua transformação, parece subentender o que Derrida designará o verdadeiro movimento da linguagem como sistema ou escritura, a metaforicidade. Mas assim Lacan teria pensado em termos de metaforicidade, não de metáfora ou metonímia, inversamente ao que de fato definiu. Em todo caso seria oportuno registrar o problema que a definição da metáfora vem representando, conforme resenha David Wellbery em "Neo-retórica e desconstrução" (Rio de Janeiro, EdUerj, 1998). A definição de como algo como metáfora pode ser construída na mente continua controvertida. Mas a assimetria do gênero que Lacan explorou politicamente parece ser de fato a origem do problema opositivo estruturalista como paralogia do fundamento-suplemento, pelo que Derrida instaurou a questão de como ser possível pensar o suplemento, como o "parergon" relativo ao "ergon" entre outros exemplos, se ele é apenas o reverso do fundamento.  O caráter opositivo dos elementos do sistema inconsciente, a exemplo do sistema da letra à  Saussure, em que um fonema só tem sentido numa língua por sua oposição a um outro, induz ao logro assimétrico inconsciente já pela identificação da libido com o masculino ou ativo, mas o desenvolvimento do saber ou movimento do significante iria desfazer o logro no sentido da mudança da impressão opositiva do suplementar ao complementar, do que depende o próprio antes suposto fundamento. 
        Como observamos, entre Heidegger e Freud, somente neste há uma chave geral de qualquer contextualização, o complexo de Édipo - que, contudo, depende de interpretação metodológica para decisão sobre sua relação, dinâmica ou topológica, com o contexto. Em todo caso, o complexo de Édipo não poderia ser considerado existencial na acepção de qualquer relação com o meio que o alterasse substancialmente. Ele não é histórico, mas como Althusser colocou para a luta de classes, "omni-histórico", explicando qualquer movimento na história. Também se pode considerar que, no ponto em que a sensação foi definida como o resíduo da consciência, deixou de ser proposto qualquer tipo de "leis de combinação de elementos" por pesquisar, a sensação sendo o único referencial. Freud lançou as bases de um tipo de análise que, bem inversamente, insistia na combinatória dos elementos como podendo ser lida em termos de especificamente estrutural, a partir do elemento apenas semiótico. O estruturalismo que fez a conversão combinatória realmente posicionou a crítica num sentido proveitoso, porém os resultados aplicados à leitura dos fatos tem se mostrado muito reducionista, assim como se pode ver nas deficiências da teoria althusseriana que reduz costumes em nível do social a "aparelhos de Estado" dominantes da subjetividade. 
          Um problema resultante da abstração de Lacan na resenha de Marx e Hillix é que assim fica vago o propósito de se julgar as críticas que resenham a propósito da psicanálise, pois a maioria - como a de ser produto compreensível de um místico judeu, conforme Bakan; ou de não ter teoria determinável, segundo Ford e Urban, mas também os próprios Hillix e Marx (p. 352, 353) - não se aplica ao veículo histórico da psicanálise em tantas áreas da teoria contemporânea, cujo correlato é o estruturalismo lacaniano, e suas relações de instigação com o pós-estruturalismo.
         A propósito, se Lacan, em 1948 manifestava propensão para, algo ironicamente, não semear a discórdia e reconciliar o "estruturalismo" dos primórdios com o seu Freud já sociologicamente integrado, aqui ressaltei os motivos pelos quais não se poderia considerar que se trata do mesmo seguimento metodológico, nem quanto à introspeção, nem à consciência. Sobre esta, Marx e Hilix repetiram a crítica funcionalista a Titchener, por ater-se ele ainda à consciência como objeto da psicologia. Não só por desprezarem os funcionalistas a análise, por suporem a autonomia do todo, um traço em comum com o gestaltismo, mas que este radicalizaria de fato. E sim porque a consciência não explicava a ação (p. 179). A meu ver esta é uma crítica contraditória, pois justamente a ação não deveria totalizar o referencial do ser humano, não obstante ser uma tendência geral designar a psicologia não como ciência da consciência, sendo unânime que como ciência ela nada tem a ver com a antiga "alma" dos filósofos e religiosos. Mas sim como a ciência do comportamento. 
           Ora, a Gestalt, que conserva pleno vigor na atualidade, também é uma escola de psicologia totalizante mas além dos adeptos poucos concordariam em que a percepção é o único objeto da psicologia por explicar todos os processos e ser indivisível. Porém é difícil considerar em que, ainda assim, a percepção seria metodologicamente tão oposta à sensação, se bem que segundo informação de Ph. Mayer ("O olho e o cérebro") na ciência do cérebro atual tenha se descartado o termo sensação e utilize-se apenas a percepção, o que também já praticava Piaget.
          A pregnância do todo sobre as partes, que caracteriza a percepção na psicologia da Gestalt, aliás uma influência expressa na imago lacaniana - definida expressamente como Gestalt (Forma) - apenas explica uma percepção isolada. De fato se o abandono da sensação pela percepção é uma tendência muito generalizada, constatável como vimos de Piaget à neurociência atual, pode-se considerar bastante forçado reduzir perceptivamente expressões como sensação de bem estar,  simpatia,  irritação, calor, etc.
        Mas como vimos, a psicanálise não está submetida à mesma contradição, pois não se reduz, nisso que pensa sistemas estruturalmente integráveis, a uma exigência do todo que ao mesmo tempo é apenas uma ação isolada - como na definição funcionalista da linguagem como função de comunicação, de cultos extáticos primitivos como função de satisfação de carências afetivas, etc. A concepção psicanalítica de "consciência" , antes das duas vias do imaginário e simbólico lacaniano, abrange as ações sensório motoras tanto como a percepção, mas o pensamento e a representação vem a ser a matéria complexa da integração dos demais sistemas como "pré-consciente" e "inconsciente".
          Marx e Hillix registraram que Watson criticara Titchener porque sua base na consciência impedia a pesquisa da psicologia animal e infantil, ao que Titchener respondeu ingenuamente que esta não era científica. Porém essa não é restrição ao estruturalismo de Piaget e Lacan, que porém não são eles mesmos interdependentes. Não se aproximam da psicologia animal - ainda que contem com ela, especialmente Lacan, e relacionem conteúdos oriundas da zoologia, é mais para definir a irredutibilidade do ser humano, se bem que apenas como gradação, como no exemplo da translação entre o imprinting animal e a imago humana. Mas são ambos especialistas na psicologia infantil.
         Como ressaltamos, o artigo lacaniano de 1948 é importante como registro da ênfase na tensão entre o eu narcísico e a sociedade como componente que de forma paradoxal permite integrar a economia psíquica, em função das demais instâncias que interessam ao sujeito, as quais sofrem por obstáculo pelas resistências impulsionais do ego. Mas assim, a concepção da civilização, entre Lacan e Marcuse, permanece um dualismo. Ambos concordam que o Édipo está "na origem de todo o processo de subordinação cultural do homem", conforme o artigo lacaniano sobre a agressividade (p. 120 e segs.) Porém Lacan considera-o mais como parece ter sido a intenção de Freud quanto à socialização como preservação da espécie, e realização progressiva da inteligência.
        Já nas páginas iniciais de "Eros e Civilização", Marcuse assinada que "a noção de que uma civilização não-repressiva é impossível constitui um dos pilares fundamentais da teoria freudiana". Porém já vimos por que, isto é, devido ao fato do pré-genital em Freud significar geralmente sadismo, assim como conforme Piaget significa a moral "heterônoma", instituída por um imaginário ser superior que personifica a ordem por si, quando a moral "autônoma" do adulto é aquela que resulta do acordo dos sujeitos.
          Um comportamento repressivo neurótico (que não tem explicação funcional decisiva) - digamos, a ideologia e/ou a prática identificáveis como nazi-fascismo, segregacionismo violentamente agressivo e autoritário que Adorno designou "personalidade anal" - expressa um comportamento instintivo pré-genital, enquanto Adorno supunha provir de carências sentidas na infância.  Mas  segundo a psicanálise, instintivo não como desreprimido, apenas como a repetição de formas repressivas pré-genitais. A evolução à objetividade que decorre da fase genital, implicando o pensamento por relações, e assim a intersubjetividade, favoreceria inversamente a repressão em nível de legalidade, "secundária", isto é, já elaborada em vez de "primária" ou inconsciente. A repressão secundária é algo necessário nas sociedades já que em todas, por melhor que seja o seu regime democrático, subsistem conflitos interpessoais, assim porém não conflitos estruturais como a rapina capitalista monopolista imperialista. O sistema policial é estritamente repressão secundária, quanto à letra constitucional, assim Marx e Hillix classificam o policial como técnico em psicologia social.
          Lacan defendera como um princípio de criminologia, que a repressão ao criminoso é uma obrigação da sociedade para com ele mesmo, cuja conduta de repressão indevida aos sujeitos idôneos reflete a incerteza sobre o haver da sociedade. Creio que esse princípio de Lacan poderia ser generalizado para crimes de grupo - que assim se limitam a "cliques"  negadoras da sociedade. Como na internet não informam o significado sociológico do termo "clique", aqui lembramos que é conceito importante, significando grupos que se formam dentro de grupos maiores, por exemplo a união de alguns amiguinhos numa turma de estudantes, sendo porém o objetivo do união da clique atacar as pessoas que compõem o grupo maior. Kretch e Cruchifield exemplificam vários diagramas de cliques, supondo o grupo maior um conjunto de pontos que formam um quadrado, a atuação da clique pode formar uma diagonal, uma linha horizontal ou vertical, etc.
      Ao ver de Marcuse, inversamente ao papel necessário ou inato da repressão primária na psicanálise, quanto ao princípio repressivo como necessário à sobrevivência da espécie, "esta concepção é tão antiga quanto a própria civilização e forneceu a mais efetiva racionalização para a repressão" (p. 37) Se por "racionalização", ao contrário de "racionalidade", entendemos geralmente uma falsa inferência, Marcuse ajunta que, contudo, a sua teoria contem elementos que transgridem essa racionalização específica psicanalítica, desfazem a tradição dominante do pensamento tradicional e sugerem o  inverso.
       Assim, na crítica de Marcuse, a liberdade cultural surge-nos à luz da escravidão, e o progresso cultural à luz da coação, esses "o preço que deve ser pago" à existência da cultura. Crítica similar faz Derrida a Hegel, pelo que a libertação pelo trabalho seria pífia, se o trabalho mesmo é um jugo. Mas como já consideramos, a inversão da equação limita-se a um ato inconsequente. As noções de autoritarismo e coação são elas próprias relativas a impulsos pré-genitais, conforme a psicanálise. Se a civilização é estruturada pelo superego, o desenvolvimento da ciência que conduz à psicanálise se faz como salvaguarda do ego, assim o conceito de sociedade e civilização transitam do funcional ao histórico. Marcuse sem dúvida tem o que colocar nesse lugar da "civilização" proscrita como o superado da história em nome da liberdade narcísica e erótica, a saber, o belo engajamento no trabalho em objetivos opostos à destruição que caracterizaria para nós nada além de um estágio arcaico. Porém como verificamos, o conceito do trabalho não destrutivo é muito amplo em Marcuse, e a satisfação da tarefa bem realizada, que não traz prejuízo a outrem, como a do alfaiate ou do cabeleireiro que se orgulham dos seus bons produtos, se desqualifica a seu ver como critério do erotizável na função, confirmando apenas a validez do establishment como ele (ainda) está sendo. 
         Ora, o que Marcuse não observa é que numa sociedade não repressiva neolaboral, para um conceito da apropriação da mão de obra no trabalho ordinário como o motivo da repressão,  teria  que haver um conjunto de pessoas com um privilégio de consciência total sobre a população, de modo a formar a comissão julgadora de cada atividade, quanto a ser ela erotizável não-destrutiva ou o contrário. 
          O que nem é apenas totalitário e propriamente repressivo, mas virtualmente inviável devido à gama de atos à escala de miríades a que os seis bilhões de seres humanos existentes na terra se entregam usualmente. Mesmo que, ao invés, fosse requerido apenas a mudança de mentalidade correspondente ao engajamento não-destrutivo, a relatividade do juízo a propósito do que se define desse modo na prática não teria sido assim de todo eliminada.
          Parece haver uma tensão argumentativa na defesa do pré-genital, por isso que por um lado, Marcuse está bem ciente de que o narcisismo é o locus dos impulsos e entre estes os de agressividade, mas por outro atribui a destrutividade apenas ao que se presentifica na atividade genérica da cultura, a repressão. Há também um problema relacionado à função da anamnese na terapia. A psicanálise não parece funcionar como a recuperação do que é ao mesmo tempo fantasia e verdade, de um modo que a fixação da neurose fosse um conteúdo cognitivo válido. 


          O texto de Lacan que viemos de citar ("Para além do princípio de realidade"), produzido em Marienbad (1936),  introduz- se por um exame do "associacionismo" como escola na psicologia. Aí, de início, se descarta a identidade com a psicanálise que, conforme Lacan, é a primeira escola de psicologia efetivamente científica
           Um status que já vimos atribuído por Piaget de outro modo, mas assim como Lacan ignorando a historicidade do conceito de ciência psicológica.  Como constatamos, ela é pré-positivista, remontando a Maine de Biran, o introdutor da psicologia pretendendo-se como ciência autônoma na época do positivismo. Na consideração de Piaget, o status da cientificidade da psicologia se atribui aos experimentos do século XIX, provavelmente pensando na lei de Fechner sobre o diferencial logarítimico da sensibilidade ao peso em primeiro lugar, mas descartando assim o introspeccioonismo a que atribui não científico. A psicologia científica conforme Piaget seria a que se pratica em laboratório.
         Na verdade a origem é até especificada na "psicologia fisiológica" e "psicofísica", mas inclui Fechner a menção aos "métodos de medida generalizado..." (Col. Pensadores, Piaget, op. cit., p. 324). A propósito, Piaget também testemunha sua irredutibilidade ao associacionismo.
            Já sua crítica a Freud se faz contra a concepção de censura como capaz de impedir que um conteúdo se torne consciente, enquanto porém o que seria uma ação de conduzir algo à inconsciência, em vez de postular o inconsciente apenas como tudo aquilo que em termos de processos, nunca foram conscientes, sendo o caso dos mecanismos do pensamento, ao contrário dos seus resultados. Ao ver de Piaget, a dissimulação devida à censura só conduz à inconsciência "com a cumplicidade do sujeito" (p. 284), resgatando assim na psicologia científica o sujeito e a consciência (p. 285). Walon, em seu "La consciencia y la vida subconsciente" também critica Freud pelo conceito de censura, considerado contraditório, ao mesmo tempo o que se veda à consciência e o que esta reprime, porém considera que Freud teve várias fases teóricas para contornar as críticas oriundas da psicologia, se bem que mesmo assim Walon julga que não o logrou de todo. A constante da formação do ego e da psicologia do desenvolvimento é porém plenamente observada por Walon no seu "as origens do caráter na criança". Aí sugere, para a questão de qual seria a linguagem pré-egológica, a homologia com a  mímica que julga explicitável nos rituais de máscaras das tribos "primitivas" africanas. 
        Independente das críticas a Freud, informa Piaget ter feito análise didática e participado de projetos visando conceituar nexos de sua teoria do inconsciente cognitivo com a psicanálise (p. 325). Lacan o critica especialmente no Seminário intitulado "A Angústia", de 1962, por conceder Lacan absoluta ênfase na afetividade - de modo que o inconsciente afetivo não poderia ser pensado apenas num paralelismo ao cognitivo, mas seria a única causalidade mental - e na problemática da "castração". Na psicanálise a angústia decorre de qualquer confrontação imaginária com a vagina, assim como o objeto da fixação fetichista é aquele que foi visto pela criança imediatamente antes de perceber a "castração", por isso é habitual o sapato ser objeto de fetiche, a criança tendo olhado dos pés para cima. O sexo feminino só não se torna correlato de angústia quando se o pode considerar como objeto do prazer do falo, isto é, receptáculo dele. Como a inscrição de qualquer oposição ou diferença, trata-se da ambivalência pelo que o mesmo correlato angustioso se ostentado, causa prazer se vemos ser coberto ou ocultado. Por isso peças de vestuário que exploram a ambivalência como quando contem transparências, decotes ou fendas, excitam. 
       A referência de Lacan a Piaget é pois que este subentende a linguagem como comunicação no momento em que exclui da forma legítima do uso linguístico o estágio a que chama o "egocentrismo" infantil - de fato o período antes da individuação do ego por relação ao mundo externo. Assim Piaget procede porque a criança primitivamente não separa de si o mundo e os objetos fenomênicos.
        Na verdade, como vimos,  a história da psicologia do século XX inicia-se pela convicção de que o "eu" formado como autoconceito individuado só está estruturado desde os três anos de idade, na civilização desenvolvida. E assim Piaget, como as demais escolas de psicologia, sustenta um conceito próprio do estágio pré-egológico. Mas creio que a designação "egocêntrica" para esse estágio é de fato algo confusa, pois um ego formado por exclusão dos objetos e dos outros relativamente a si é o telos do processo. 
           Ao ver de Lacan, não há a diferença entre um estágio infantil da linguagem sem comunicação, em que conforme Piaget supõe, a criança só fala consigo mesma; e um estágio posterior onde se trata da fala comunicativa. Porque não considera Lacan verdadeiro que a linguagem seja comunicação ("O Seminário", livro 10, Rio de Janeiro, Zahar, 2005, p. 310). A função do significante, segundo Lacan, sendo, inversamente, sempre a mesma, fazer surgir a consciência do significado no sujeito que se expressa (p. 311). Mas a função depende da estrutura do falo - isto é, à causalidade sexual dos fenômenos psíquicos só aparentemente descontínuos - e ignorá-lo resulta naquilo que Lacan considera a ilusão gnoseológica de Piaget, o fato dele atribuir compreensões determinadas à criança cujas questões próprias são ignoradas. Mostra que o construto da torneira em Piaget,  não prova desconhecimento da criança do caráter da linguagem, apenas porque Piaget constata que a explicação à criança de como a água não passa porque a torneira está fechada, e a solicitação dela contar o mesmo a outras crianças, resulta que ela nunca o repete a contento, elide a informação propriamente. O que seria para Piaget o mesmo que se constata nos mitos, uma vez que eles se tecem de contradições notáveis. Ao ver de Lacan ocorre apenas que a criança assimila a torneira ao falo, e é isso que ela revela às outras crianças como o fato explicativo da torneira, assim como os mitos não são "histórias", mas construções estruturais em torno dos objetos da libido inconsciente, a castração, etc. 
       Em todo caso, retomando nós agora a concepção de Lacan sobre a reformulação necessária do princípio de realidade, a obra de história é aí registrada, pois referencia-se ele na circunscrição cronológica do que seria "a segunda geração psicanalítica" (op. cit. p. 77).
        A tangência à história da psicologia é aí estratégia de contextualização da descoberta psicanalítica, que assim pode ser introduzida como cientificização do campo da psicologia, não obstante Lacan sempre atribuir a psicanálise como algo irredutível a este. Mas a crítica que incide sobre o associacionismo se expressa contra uma falsa ciência. O "verdadeiro" que o domina, porém sem que enquanto psicologia lhe seja dado explicar de onde vem, Lacan sintetiza em torno da concepção de memória (engrama) e ligação associativa do fenômeno mental. A crítica considera a similitude como viés conectivo de ideias, em termos de petição de princípio, falatório idealista não obstante professar o materialismo - já vemos porém o idealismo da espécie universal como a realidade em si, no Seminário 1, não obstante estar lá derivado da biologia de Weissman.
        A crítica de Lacan ao associacionismo é ao esquema que supõe a mente cópia ou reflexo da realidade. E, assim, o ponto crucial na irredutibilidade de Lacan a Titchener e à psicologia pós-romântica, é enunciado, em torno, justamente, da imagem, pois se aquela psicologia foi o que a preservou, fez dela apenas o reflexo do núcleo aparente do Real, a sensação. Para Lacan, pois, como reportamos,  a imagem é relacionada ao inatismo estrutural. Assim o vemos nesse ponto defender a fenomenologia que porém ataca quando se trata do seminário sobre as psicoses, quando contrapõe-se a qualquer "compreensão" de resíduos racionais possível quando se trata do delírio. 
          A psicologia humanista de Laing, Cooper, Maslow, May e outros, é a que deriva do método "compreensivo" ligado aos inícios do funcionalismo sociológico de Weber e outros, na época de origem da fenomenologia e existencialismo. A compreensão, já vimos, subentende redução das ações a significados únicos supostos definidos. Na clínica humanista, com exceção da excelente contribuição do esquema das necessidades oriunda de Maslow, escalonadas do básico alimentar ao ápice da auto-estima e realização pessoal, há a redução da psicose a um caráter inautêntico da pessoa (falso ego) conceituada em termos de significado atribuído a si mesma. A psicose seria compreensível conforme a definição desse significado, assim como a normalidade se ele é autêntico, ou seja, coerente com a existência real da pessoa. Geralmente o inautêntico pode ser interpretado como uma aspiração legítima que os pais negam, assim como o mero ter personalidade própria.
       Para Lacan, pois, não há o que compreender na psicose, apenas a clínica deve liberar a elaboração do simbólico, permitindo o exercício da palavra. Já a palavra livre como fuga da obrigação, inversamente, havia sido considerado diagnóstico adequado quando não se trata de psicose, mas de paciente que apenas se utiliza da clínica para perpetuar o comportamento de fuga.
         A crítica da ciência como função da verdade é conduzida por Lacan até Freud como revolucionário porque ao contrário de julgar normativamente o discurso do sujeito, estando ou não de acordo com o convencionado verdadeiro, teria ele resgatado a íntegra do relato do paciente, e só então iria poder julgar do que aí é significativo na sua imanência. Esse poderia ser um caminho válido da psicologia, a meu ver, porém todos sabemos que a imanência do discurso na leitura psicanalítica não é o contexto do discurso que ela ouve - assim, irredutivelmente à tese do gênio sempre exitoso na satisfação de suas necessidades, conforme  Maslow,  os grandes nomes da literatura romanticista até mesmo Poe foram julgados dementes por psicanalistas como Rank. Freud foi menos rigoroso que Rank quanto aos escritores romanticistas, porém felicitou Maria Bonaparte pelo diagnóstico de Poe, que deles representa um prosseguimento, como doente mental, quando o escritor na verdade construiu o protótipo dos romances de detetive, de modo que Lacan muito se utiliza de Poe ("a carta roubada") como exemplo de estrutura.
       Torna-se interessante o que possa Lacan considerar que seja a associação livre como técnica psicanalítica uma vez que a liberdade aí é apenas o pretexto da revelação do determinismo psíquico ultra-rigoroso freudiano, assim como de qualquer inatismo. Com relação ao que vimos em Zizeck, podemos recolocá-lo agora com proveito, relacionado ao texto lacaniano sobre a superação do princípio de realidade.
           É nítido o interesse pela questão do conhecimento, o que podemos imbricar com os textos sobre "a agressividade em psicanálise" (1948) e "o estádio do espelho" (1949). É algo curioso que na edição dos Escritos, o terceiro referenciado esteja antes do segundo. Porém nesta apresentação realmente eles parecem manter relação de explicado e explicador, ou de um desenvolvimento.

           Ora, se já vimos a propósito da questão do conhecimento em Lacan, aqui seria preciso retomar sua crítica não só ao conceito de ciência como função do verdadeiro, inversamente à noção de ciência como função simbólica, assim o referente de sua fórmula, não a imediatez perceptiva. E de modo que se o Real é o que a ciência não apreende por si, não é porque nele se trate do que não muda ou o que diz, como um reflexo, o que se passa, o que seria o mesmo que verdadeiro. Mas sim trata-se do que ocorre enquanto desrealização/desveridicção do mundo como devir incessante na experiência necessariamente relativa do sujeito. Mas, também, haveria assim a aporia se continua tratando-se de ciência - o sujeito mente, sem dúvida, mas isso é o que afirmamos ser verdadeiro sobre ele. A alucinação, o delírio, não é erro dos sentidos (p. 81). Conforme Lacan afirma, é sim a estrutura do sujeito como aquilo mesmo que ao tratá-lo se está querendo (cientificamente) definir.
            Se há aporia é justamente como distinguir o delírio da fórmula, ou, propriamente, do imaginário. Também a oposição de subjetivo e objetivo aqui se torna problemática. Em todo caso tratam-se somente de fatos de estrutura. 

         Na comunicação em Bruxelas sobre o estádio do espelho, Lacan designa a "dialética social que estrutura como paranoico o conhecimento humano" (p. 99) Anterior à dialética estaria pois a "insuficiencia orgânica" que desregula na pessoa humana a interação de imediação espécie/natureza. 
         Ao que parece, tanto o fato do ser humano precisar das técnicas para suprir carência de pelos, garras, etc., como o conhecido fato de que ao nascer o cérebro do bebê precisar de algum tempo para formar estruturas neurais "neonatais".  Até mesmo funções muito básicas como o movimento dos olhos é posterior de algum tempo ao nascimento, o sugar sendo o único reflexo congênito. Consta que automatismos idiossincráticos, como associar o mamar com colocar a mão na orelha,  se formam a princípio, porém logo são esquecidos quando se formam reflexos verdadeiros, como olhar para a origem do som quando se ouve um barulho. Contudo subsistem automatismos primários como a reação de susto, e em geral considera-se regressão sempre que algo primário se reativa. Conforme a maturação neonatal e o período  de desenvolvimento inerente, a inteligência da criança chipanzé supera a da criança humana até que esta comece a poder exercer a linguagem.
           Na concepção de Lacan do desenvolvimento, a imago é não apenas uma ou outra, dentre as primordiais do despedaçamento ou unidade, mas uma função que evidentemente podemos atribuir ao imaginário (p. 100). O Sujeito é pois, na função do espelho, quando o bebê se observa refletido num espelho e fica muito feliz, sujeito de sua identificação com a imagem, desde a qual ele começa a trajetória de suas identificações com os outros unificados em imagens, o que antes não eram, primeiro atuando por equalizações de todos com a sua mesma, depois aprendendo a individualizar-se. O "efeito desrealizante" é o que Lacan referencia como observação de Callois sobre a relação do organismo com o espaço em função dos fenômenos do mimetismo animal, e onde Lacan imiscui seu tema paranóico do saber. É portanto na relação com o espaço que se constitui a Gestalt do corpo unificado visto na reflexão do espelho. 
          Assim o princípio de realidade é o que está sendo reconceituado numa posição temática da psicanálise da imagem, na linha de pesquisa muito vasta abrangendo a etologia e a psicologia animal, por meio de estudos do imprinting e mimetismo por exemplo.
            A crítica ao associacionismo da imagem como apenas reflexo das sensações e não função autônoma, é portanto algo posterior à crítica que se apoiava na constatação de Wurzburg sobre o pensamento sem imagens. Parece mais aproximado ao estudo das ilusões que se seguiram, as quais são imagens cuja recepção pelo observador depende de leis perceptivas que impedem que sejam vistas de outro modo, não obstante não corresponderem à figura como é - por exemplo, quando a imagem pode ser vista de um modo ou de outro mas a figura evidentemente sendo uma só; ou que parecem invariavelmente o que se sabe não ser, como as duas linhas que, devido à posição das setas na extremidades, são iguais mas parecem de tamanhos diferentes. Porém devemos observar o registro de certo aporte cultural no ilusionismo suposto lei perceptiva, pois relata-se que sujeitos oriundos de tribos indígenas geralmente não erram na identificação das extremidades iguais. Também o Roscharch, teste em que são apresentadas figuras abstratas e o sujeito deve sugerir o que lhe parecem elas, registra constantes culturais comprovadas, assim sujeito de certas etnias veem uma figura com duas metades coloridas como mulheres brigando, enquanto sujeitos de uma específica etnia vêem mulheres dançando.  
          Lacan considera contudo, que Freud foi inovador ao lidar com ilusões, alucinações, sonhos, atos falhos e devaneios, como material psíquico relevante - na explicação do funcionamento psíquico ou com objetivos terapêuticos. Mas a função da linguagem, como aquilo para o qual foi transportada a experiência clínica, parece-me ambiguamente considerada em Lacan, na medida em que ele confunde gênero de discurso com "intenção" punitiva, propiciatória, demonstrativa, agressiva, etc. (p. 86) Derrida é mais claro quanto a ser do gênero que se segue a função que se pode interpretar intencional, não restando dúvida quanto a isso. Porém o irredutível na desconstrução sendo o desejo, aí, nessa problematização do signo, é que se poderia colocar em questão a terminologia do "intencional".
          Qualquer posição intencionalista, e aí Lacan deve a Husserl, está com a fenomenologia bastante comprometida, conforme se pode considerar a crítica pela qual se a linguagem fosse intencional ela não funcionaria como faz, já que a intenção ideada de alguém não corresponde necessariamente ao que o receptor considera como tal. Ou mesmo, a linguagem usada por alguém nem sempre corresponde a uma ideia que alguém possa explicar qual seja, restando os termos sincategoremáticos - como pronomes relativos, preposições, conjunções - sem ideação possível. O gênero textual ou discursivo, como carta, conversa, telefonema, etc., dentro de tipos como narrativo, injuntivo, explicativo etc., assim como a linguagem - que já se considera não subsistir fora de algum gênero - tem estruturas imanentes e seria complicado discernir até que ponto um uso de gênero corresponde a uma "intenção" ou, pelo contrário, o fato do gênero ser utilizável determina que o seja, já que algum dentre os utilizáveis precisa ser. Os gêneros são efetivamente históricos. Quanto a endereçamentos pragmáticos invariáveis, como "tipos" não são intenções definidas relativamente a outrem como nos exemplos lacanianos que acima vimos, mas formas de atuação como injunção, narração, descrição, argumentação, exposição.
          Lacan não deixa de considerar porém, que a própria intenção não é transparente ao sujeito e que a parte da consciência que cabe a ele é o efeito da repressão sobre a intenção inconsciente - cuja estruturação na linguagem está definida pela natureza desta como Outro implicado no Sujeito. Poderíamos considerar aqui estarmos no âmago da crítica da ideologia, que para Lacan é certa relação "mentirosa" da linguagem com o pensamento que almeja expressar-se através dela (p. 87). Mas Lacan considera estar procedendo um "aprofundamento fenomenológico" no qual a consciência se revelaria na sua fundamental incompletude - ou seja, fenomenologia de fato não lá muito à Husserl, exceto se por isso Lacan entenda que o ato da consciência intencional se complementa numa ação factual. E a analítica de fato é transgredida na psicanálise, porque não se trata de dissecação do diálogo, este no qual o falante analisando está factualmente empenhado. O analista não faz o papel de interlocutor, o que ele quer é promover o delírio da interlocução na qual o falante já só verá aquele de quem fala, o núcleo do complexo,  ali onde se trata à sua frente contudo apenas a quem se dirige, o terapeuta. Geralmente segundo Lacan a neurose é porém o mesmo delírio, não obstante a definição da psicose como o único referencial relacionável a delírios, não o sendo a neurose. Uma vez que o neurótico fala inconscientemente ao pai ou à mãe, sempre que fala conscientemente com alguém. Segundo Freud essa é uma situação classicamente associada ao casamento quando um dos cônjuges tem alguma relação não resolvida com o pai e a mãe. Nesse caso ele repete com o cônjuge a interlocução parental problemática. Freud associa em todo caso, sempre o casamento com a ternura, inversamente ao prazer erótico, o que fez Lacan sugerir que essa opinião se devia a situação própria, a insatisfação de Freud com a mulher. 
          Lacan situa aqui, aparentemente, o cerne de sua teoria do imaginário, posto que o correlato do "quem" falado na transferência é uma imagem. A função do analista é, pois, de reconhecimento: é ele quem reconhece a imagem que o sujeito tanto mais exprime, tanto mais desconhece ser o que está exprimindo, como do pai ou da mãe, benevolentes ou punitivos, do irmão, filho rival, etc. Mas o efeito do reconhecimento é o poder da ação: "a partir daí, com efeito, o analista age de maneira que o sujeito tome consciência da unidade da imagem que nele se refrata em efeitos díspares, conforme ele a represente, a encarne ou a conheça".
        As "intervenções" do analista devem pois ser de múltiplos aspectos, porém sempre mantendo-se em dois planos, da interpretação e da transferência, conforme cognitivo e afetivo. O ajuste deles é o que mede o talento - a técnica e o tato - do analista.
            Se tudo corre bem, o analista cessará de ter poder sobre o analisando porque o sujeito terá reconstituído a imagem e a memória, retomará o estado da lembrança sem os sintomas. Lacan não considera pois que o ilusionismo psicanalítico revelou qualquer verdade do inconsciente, mas sim a ilusão do inconsciente (p. 89).

            A relação da imagem com o Real é de realização e desrealização. Primeiro tomando-se consciência dela mas em seguida conseguindo-se situá-la em seu estatuto próprio, sua "realidade" ilusiva, de imagem, aparência. Nesse ponto, Lacan trai sua própria intenção de conceituar a experiência psicanalítica como protótipo do conhecimento. Ele antecipa a crítica, precisamente, a esse empreendimento, que seria a observação de que o analista, ao subverter a função da imagem assimilando-se a ela, na verdade a constitui, ela não preexiste ao menos ali onde objetivamente deve vir a situar-se. Na resposta a essa crítica possível, ele a assimila à resistência - como se diz em psicanálise - mas também fala de "peso ideológico". (p. 90) O objetivismo mesmo já é intenção antropomórfica naquilo que mesmo em física não pode furtar-se a utilizar termos cuja origem é o campo da ação própria, subjetiva, como a noção de força. Lacan consider precisamente o contrário do positivismo, que considera as palavras de significado subjetivo derivadas metaforicamente de palavras com significado objetivo. Para ele sempre as palavras da língua com significado subjetivo servem de origem as de significado objetivo. 

     VI   Antropologia em Psicanálise 
          Ao longo de sua trajetória, Lacan mudou alguns aspectos de sua estimativa inicial dos "complexos familiares", quando julgava as sociedades matrilineares primitivas, assim apenas casos de "pai fraco", de que decorreria serem culturas estereotipadas, incapazes de progresso ou da complexidade da ocidental desde a Antiguidade.  A propósito da antropologia de Freud, onde a princípio o déspota da horda primitiva se torna vítima do parricídio por  ter despertado desejos incestuosos nos filhos, que assim se arrependem também do crime, erigindo o totem que faz o trânsito do animismo narcísico originário ao estágio religioso que precede o científico, Lacan e Strauss atribuíram como apenas um esquema simbólico, já não sendo possível admitir a hipótese. 
         Mas assim conservaram eles o princípio de classificação antropológico , e se Strauss abole o pré-lógico - que subsiste em Piaget para os "primitivos" - ele considera porém que a combinatória mais rica, sendo a profusão de possibilidades de casamento na sociedade ocidental, permite escalonar o grau de percepção da natureza mesma da estrutura, mera combinatória qualquer dos elementos básicos (parentemas em Strauss, assim como em Saussure os fonemas, ou o trabalhador, os meios de produção e o capitalista para Althusser, o quaternário edipiano para Freud, etc.). Assim conforme Strauss, segundo Frederick Keck,   as sociedades mais simples seriam as que tem menos possibilidades de casamento pelo fato da regras de parentesco serem muito limitante. Gui Rocher observou bem a classificação do bricoleur e do engenheiro, como primitivo e civilizado, de modo que uma série de requisitos do subdesenvolvido e desenvolvido se depreendem conforme Strauss, especialmente em torno, respectivamente,  da rejeição ou produção de ciência, mas também de certa inveja do desenvolvido pela simplicidade do subdesenvolvido, etc. 
       Em "de um discurso que não fosse semblante" (seminário 18, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, p. 25), não obstante insistir sobre que, se existisse matriarcado, ele seria sem universal, como já vimos inicialmente em termos da defesa de Aristóteles por Lacan,  ele já contemporiza a classificação antropológica. Considera agora que inexiste certeza quanto ao "que concerne às sociedades primitivas. Não podemos articular os fatos senão com a mais extrema precaução. A partir do momento em que as rotulamos com um termo qualquer - primitiva, pré-lógica, arcaica e seja lá o que for, de qualquer ordem arque (e/i) - devemos perguntar-nos porque seria esse o começo. Por que essas sociedades primitivas também não seriam um resto? Nada decide isso de maneira categórica". 
            O primitivo é tangenciado como aquele que estaria antes do "discurso do mestre", este a linguagem das sociedades mito-poéticas que para Lacan são despóticas, porém não no sentido da força, do reino pelo monopólio da violência, mas por um "motor" cuja ordem é irredutível a ela, e que encarna a autoridade moral como a coesão social definida por Lacan.
        O tema do resto parece ressoar com "os complexos familiares", na concepção de Lacan sobre os judeus, que seriam o protótipo do patriarcado, e onde a coesão social está plenamente estabelecida.
           É realmente um tema bíblico, quando o povo foi expulso de Israel por castigo do seu Deus contra a idolatria, os profetas anunciavam que permaneceria um resto, que iria perpetuar a sua aliança com o seu povo, de modo que depois o povo retornaria, o que aconteceu na história pelo decreto de Ciro, após a invasão de Nabucodonosor. Sendo ou não por isso que Lacan pensou em termos de "resto" para demonstrar a precariedade do conhecimento das origens, a sua intenção é eminentemente teleológica. 
       O psicanalista se endereça somente ao homem que resultou da evolução psicossocial, "o homem moderno com a família conjugal", sendo que a seu ver "esse homem é o único objeto que ele submeteu verdadeiramente à sua experiência". Se há um conhecimento do que precede, é apenas relativo ao reflexo que permanece na mente desse mesmo homem, conforme Lacan afirma expressamente em "os complexos familiares" (p. 57). Quanto ao exame de Lacan a propósito da questão dos primitivos ainda nesse início, é interessante notar que ele se utiliza elogiosamente de Manilowski - que porém caracterizou o caráter pré-lógico do primitivo como mentalidade mágica que fica apenas na base do triângulo de Ogden e Richards, assim no imaginário da relação direta do signo com o referenciado, ainda não tendo constituído mentalmente a ponta do triângulo como a relação de "referência". 
         Lacan elogia Malinowski como a "um etnólogo cujo conhecimento muito deve à psicanálise" .(p. 54) Porém o fato conhecido é que Malinowski descobriu algo inquietante para a teoria psicanalítica, a curiosidade de que os nativos que estudou no Pacífico não sonhavam. Somente se poderia coadunar isso com Freud, quando este ainda acreditava no sonho como realização de desejos,  conforme o etnólogo, se deduzíssemos que eles não tinham desejos. 
           Em todo caso, conforme Lacan relata, Malinowski teria considerado na poliandria ou ao menos na ausência de repressão da sexualidade feminina desses nativos, onde é o tio que representa a função de autoridade familiar, que assim o pai fica isento da função repressiva, dotando-se "de um papel de patronagem mais familiar, de mestre em técnicas e tutor da audácia nas empreitadas". Esse outro tipo de homeostase psíquica resultaria na ausência de neurose, segundo o etnólogo. Para Lacan, inversamente, como vimos, não se trata de qualquer "miragem paradisíaca", mas só de estereotipia. Mas para ele é a repressão, de que o pai imago deve se encarregar na sociedade patriarcal, que fortalece a sublimação e que, pela rivalidade do complexo edipiano, força a ultrapassar o próprio estágio submisso à autoridade puramente significante pré-genital, a mãe,  e, assim, ultrapassar a angústia.
           Não devemos deixar passar a oportunidade para nos lembrarmos aqui da severidade da receita de Lacan ao pequeno Hans - o pai deveria castigá-lo tão exemplarmente quanto de um modo mais duro que o normal, para marcar a autoridade, sendo o caso dele de um pai fraco - não obstante ser um discípulo do próprio Freud. O matriarcado, isto é, as sociedades matrilineares, no "complexos familiares", é de fato classificado como caso do pai fraco, como vimos. Algo jocoso é que estudei a psicanálise do pequeno Hans lacaniano, exposta no Seminário 4 ("A relação de objeto") em meu exame do "reflexions on violence" de Sorel, e ali registrei o trecho desse diagnóstico, de modo que a citação revela um Lacan bem violento. Considerei naquele estudo que o pequeno Hans não era tão necessitado de castigo como Lacan sugeriu. 
          Mas eis uma receita a meu ver perfeita para o corrupto político brasileiro, bandido notório, que roubou diretamente salários dos funcionários públicos há alguns anos, depois de ter roubado a poupança, não obstante ambos os fatos seres oriundos indiferentemente, de esquerda e direita; além de estar oprimindo a população com bugigangas digitais importadas intrusadas por calhordas tanto como péssimo atendimento ao público com acréscimo de preços abusivos, sem fiscalização de qualquer tipo, na época do governo de esquerda petista depois de ter genocidado por crime hediondo na ditadura direitista
          Como se poderia esperar, por não ter havido rejeição total a assimilação da crítica anti-ideológica em nível do desejo, mantendo-se uma ortodoxia já superada, decorrendo pois apenas a ambição de inverter a hierarquia, os trabalhadores do petismo foram mistificados por mitos de atuação direta tal que se tornaram insuportáveis ao nível do fascismo; Cada classe de profissional, especialmente motoristas de taxi como também os coletes amarelos na França, atendentes de supermercado, ou atendentes dos serviços de telefonia informática,  supondo que a existência mesma depende das funções de cada um dos seus integrantes, assim chantageando a população de modo a um regime de extorsão  monetária e opressão de atendimento, discriminando ostensivamente pessoas que não considerem submissas, etc. O que evidentemente significa que o patronato o está usando como instrumento do poder, situação  que o "pt" ,não obstante de esquerda, apenas permitiu que decorresse na onda de privatizações que integrou. Esperamos agora com a superação do "pt" que se restaure o bom nível das relações sociais, mas consideramos que só com verdadeira atribuição das responsabilidades aos culpados, com aplicação da penalidade cabível, irá haver desenvolvimento da consciência política, que está tão defasada que minorias que se tornaram protegidas por leis anti-discriminação como os negros ou mulheres só conseguem se pronunciar como expressamente objetivos de "poder", com exceções de pessoas esclarecidas que porém, por não servirem ao estereótipo fascista da mídia, são ainda objeto de atentados violentos.  Não obstante a misoginia ser conspícua, especialmente relativa a mulheres de mais idade.
              Para Lacan, voltando ao nosso tema, na referência ao contexto dos "complexos familiares",  a antinomia instaurada pela repressão do pai imago, suscitando pois a reação de independência do filho, supera os limites do drama individual, como efeitos do progresso, por "estarem integrados num imenso patrimônio cultural: ideais normais, estatutos jurídicos, inspirações criadoras". Nessa época, a conclusão de Lacan era: "O psicólogo não pode negligenciar essas formas que, concentrando na família conjugal as condições do conflito funcional do Édipo, reintegram no progresso psicológico a dialética social engendrada por esse conflito". (p. 55) Mas ele já considerava então ser "a um problema de estrutura que é preciso relacionar o fato de que a luz da tradição histórica só atinge plenamente os anais do patriarcado", esclarecendo apenas "a franja" dos matriarcados subjacentes à cultura antiga. Não propriamente essa cultura, está claro.
       O matriarcado puro é portanto, como origem, algo desconhecido, se é que se pode compreendê-lo assim. Mas o "liame" da obrigação moral, que para Bergson "fecha o grupo humano em sua coerência" deve ser universalizado, conforme Lacan nesse trecho. A universalização do liame moral é o correlato da transcendência como impulso da vida em Bergson e Lacan, contra a queda do preceito na matéria, a estereotipia, a pseudo-ética do inseto, etc. - tudo que se pode conhecer do "as duas fontes da moral e da religião" begsoniano. 
            Em bom leitor de Bergson e Freud, para Lacan a mãe seria o significante puro da autoridade, o pai o caminho ao transcendente significado desta como o fundamento mesmo da liberdade subjetiva - conforme se pode interpretar do trecho.
          Todo o terror ritual arcaico, como os sacrifícios humanos e as crueldades que os submetiam, é relacionado por Lacan aí ao significante primordial, a mãe, sendo definidas como "fantasias da relação primordial" com ela. Assim seria esperável, para Lacan, que o trânsito da leitura de mitos de sociedades matrilineares - independente da se poderem considerar "matriarcado" ou não - para os mitos da sociedade patriarcal revelasse um abrandamento dos sacrifícios rituais. Não obstante tal suposição não corresponder ao que se conhece da antropologia social, destoando muito da própria informação de Malinowski, Briffault e semelhantes, que serviu, inversamente, ao elogio do matriarcado poliândrico em Oswald de Andrade, é o que Lacan constata na religião dos antigos hebreus, e por isso é que se imiscui nesse trecho o tema do "resto". 
           Se a autoridade paterna é o que "introduz na repressão um ideal de promessa", Lacan vê no relato do sacrifício do filho exigido a Abraão algo que "o liga formalmente à expressão" da promessa, mesmo sentido que transparece no mito grego do Édipo, "representação não menos ambígua da emancipação" da tirania matriarcal e declínio dos ritos sacrificiais. Mas quaisquer que sejam as formas míticas, elas estão "na orla da história, muito antes do nascimento da humanidade da qual os separam a duração imemorial das culturas do matriarcado e a estagnação dos grupos primitivos" (p. 56). A humanidade mesma nasce depois do mito matriarcal e do rito primitivo, pelo que se pode compreender da frase citada.
            Assim Lacan, ao contrário de Nietzsche, considera Israel similar a Roma, ambas sendo extrações da sociedade patriarcal, em cuja história "vemos assim afirmar-se dialeticamente na sociedade as exigências da pessoa e a universalização dos ideais". Em "de um discurso que não fosse semblante", se trata, mais uma vez, do que podemos antepor à concepção de Zizeck sobre o Real lacaniano como referente da ciência, quando a nosso ver é o simbólico. Pois se o semblante é o signo, a linguagem, um discurso sem semblante é o Real, que aí Lacan expressa propriamente o indesignável, conforme se pode constatar: "a articulação algébrica do semblante - e como tal, se trata apenas de letras - e seus efeitos, esse é o único aparelho por meio do qual designamos o que é o real". (p. 27) 
          Se temos a secreta nostalgia de um discurso sem semblante, além da linguagem, é porque algo existe nesse estatuto, como o Real, porém não sendo realmente designável, não pode corresponder ao nosso desejo nostálgico, que é o desejo, ao contrário, da significação plena, direta, sem mediação. O correlato direto da significação idealizada desse modo não se opõe ao que existe ou o semblante de um modo que se pudesse afirmar estar havendo ilação do que realmente está por trás da máscara. O que a castração permite que possamos pensar é que não há nada independente da linguagem em termos de significação.
            Ora, a significação também não se generaliza para qualquer coisa por si designável, ela é somente a atribuição propositiva (a é b), portanto função do um mais um - assim o signo é sempre "algébrico", combinatório - e tem que haver o "um", sujeito significado. Esse "um" é o pai imago, e, conforme o desenvolvimento, a auto-consciência de um "eu". O Seminário se refere justamente ao que seria a cultura pré-patriarcal, se ela pudesse ser documentada originariamente, além da crueldade primitiva como fantasia da relação direta relativa à mãe imago. Assim isso que seria é a "mulher", ou mais precisamente, as mulheres - que não a histérica. 
           As sociedades matrilineares documentáveis já o demonstram. Se o mito patriarcal se esmera em genealogias que situam o patriarca numa certa sucessão, numa linhagem - mesmo que na origem, os ancestrais míticos vivessem uns novecentos anos, como na bíblia - o mito matriarcal não tem origem definível. A poliandria é a incerteza perpétua sobre quem é o pai, e a certeza mais inabalável sobre quem é a mãe (p. 162) . Lacan deduz assim que "uma mulher" é sempre "mais uma mulher". A mulher se sente só ela mesma enquanto mulher, não se totaliza, não se generaliza. Se há lógica neste mundo, de Aristóteles a Peano, e por isso podemos classificar proposições universais (todo x...) segundo Lacan, é porque raciocinamos conforme o sintagma do patriarcado, "todo homem". Não há o sintagma "todamulher" - exceto na histérica, neurótica por ser justamente "todamulher".
    Se Lacan não distingue essencialmente Israel e Roma, não há dúvida porém que para ele há patriarcados e patriarcados. Visto que a pessoalidade e a universalidade são o lote patriarcal da inteligência, somente com o direito romano ele afirma que isso se "viveu tanto em poder quanto em consciência, e que se realizou pela extensão revolucionária dos privilégios orais de um patriarcado a uma plebe imensa e a todos os povos". Mas sendo o cristianismo que perfaz " a exaltação apoteótica" às "exigências da pessoa". (p. 56) Alhures a crítica à mentalidade hebraica antiga se faz explícita, em dois lugares. O Seminário 17, intitulado "O avesso da psicanálise"(1969) , em que se define "O campo lacaniano", por onde se introduz os quatro significantes ou discursos - do mestre, da universidade, da histérica e do analista - a partir de quatro variáveis (Sujeito, Outro, sujeito barrado e objeto a) cujas posições recíprocas se combinando formam as quatro posições significantes definidas. E o Seminário 10 ("A angústia"), ao qual vimos conter a crítica de Lacan a Piaget.
         Ora, quanto ao que estamos examinando como a reversibilidade psicanalítica entre as interpretações de Marcuse e Lacan, vemos que um e outro situam a violência de cada lado da antinomia de primitivo e civilizado, por Lacan mais definida como matriarcado e patriarcado. Porém sendo a repressão o crivo lacaniano da superação da violência, vemos como aí a sua posição fica exemplarmente contrastada à de Marcuse, que define a repressão como a violência ela mesma. A atualidade, onde a violência é o corolário da opressão social do capitalismo avançado típico das sociedades cristãs, que Marcuse esgrime criticamente contra as fórmulas jubilatórias da civilização, não seria porém argumento suficiente contra Lacan. Ele considera já esse estado de coisas desde "os complexos familiares", mas o atribui à fixação do estágio matriarcal, diagnosticando a patologia social do nosso tempo como um verdadeiro "declínio social da imago paterna." (p. 59) 
            A oposição dos pontos de vista de Lacan e Marcuse é bem explícita, porém apenas como dois modos de interpretar o mesmo dogma opositivo de primitivo e civilizado que estrutura todo o discurso ocidental da modernidade possível.


VII   Antropologia e Ciência 

      O Seminário 10 sobre "A angústia" (Rio de Janeiro, Zahar, 2005), retoma o tema do resto. Explicitamente agora relacionado aos judeus, o resto se torna relacionado ao narcisismo, o ego como fragmento do corpo, e os judeus são evocados como em relação com o que o eu estrutura em termos do desejo. Ora, a ambiguidade que assimilamos entre a experiência subjetiva especular e a interpessoalidade das Imagos, aqui parece tangenciada por uma relativização do desejo, o que na fase inicial da carreira Lacan estabelecia numa relação simples com a evolução dos complexos à idealização. 
             Trata-se da exortação a não "desconhecermos que, em nossa técnica, trata-se de um manejo, de uma interferência, ou até, em última instância, de uma retificação do desejo" mas que não define propriamente "a ideia do desejo e exige seu perpétuo questionamento...". O contrário dessa precaução implicaria afundar-se na rede infinita do significante ou na limitação aos "caminhos mais corriqueiros da psicologia tradicional". (p. 271).
          Nessa vertente de verdadeira relativização do ideal, Lacan aporta à ultrapassagem da oposição de Eu e Libido, o que antes vimos ser algo positivamente interessante. Na subsunção ao princípio do prazer, a alma é o efeito do amor ("Almor"), conforme o que já vimos da transferência e especialmente o desenvolvimento do Encore (Seminário 20, "Mais, ainda", Rio de Janeiro, Zahar, 1985). Assim também o mito de Apúleio sobre psiquê e Eros, é lido por Lacan como essa mesma subsunção, Psiquê só existe no momento em que tenta castrar Eros, isto é, defender-se com uma arma caso constate ser ele um monstro, na circunstância dele ter proibido que se encontrassem senão no escuro, e dela ter imaginado um meio de espreitar o seu rosto, instigada pelas invejosas irmãs. Se os junguianos veem nesse mito a individuação, pois a alma desde aí percorre trabalhos para reencontrar o amor, Lacan considera que se trata apenas de que alma e amor são  funções do desejo, objeto a, etc. Creio ser esta uma interpretação redutora, pois se o desejo objetal estrutura o amor, este existe  na realidade. A concepção inicial de Lacan, o amor sendo deslocamento do ego pelo amado na economia inconsciente, de modo que a pessoa ama outrem como a ela mesma, parece mais coerente, assim  porque a neurose travestida de afeição pode ser diagnosticada, uma vez que nesse caso o afeto é como que por si mesmo. A alteridade sendo o referencial do amor, então o amor seria um correlato da aptidão ao objetivo político de emancipação. 
           Porém no Seminário sobre A transferência, o mito de Eros e Psiquê via-se em termos da relação da alma com seu desejo. Em todo caso, nesses dois registros Lacan persegue a redução da dualidade a um termo do par. A alma existe em função do desejo/amor/Eros. O eu existe como imaginação do desejo, antes produzido no Sujeito pelo Outro/linguagem, e cujo correlato é o objeto. Assim a intenção profunda da interpretação de Lacan do mito é denegar a realidade substancial dela, assim como dos objetos ideativos do ego que não fossem o correlato da função, primeira em relação a si mesmo, isso que é o "objeto a"
         Ora, é de se perguntar se essa redução aparentemente materialista de fato inova como pretende. Pois desde a filosofia e religião antigas, a substancialidade da alma é derivada daquele fundamento do saber ideal,  cuja definição é a razão de ser da autoridade filosófico-religiosa como a do sábio platônico, senhor da "politeia", ou em nossa língua, "reino" - não se teria razão para traduzir o termo por "República". Por outro lado, a ambiguidade psicanalítica que acimas examinamos retorna nesse ponto.
           A intenção de Lacan parece ser indubitavelmente traçar o vetor bem definido do termo primeiro ao termo derivado, assim como do desejo/objeto/linguagem ao eu imaginário. Porém se o que o vetor define é a economia psíquica, não se pode garantir a direção, somente o sentido, e o desejo/objeto/linguagem só são postos como a estrutura subjetiva que explica o objeto da psicologia da formação, como podemos colocar as condutas de Janet, o Édipo freudiano, a psicomotricidade de Wallon, as estruturas cognitivas de Piaget, etc., ou seja, o ego auto-conceituado, já o oposto do narcisismo pois apto a compreender-se  assim como a outrem enquanto tais, o que resulta da formação  desenvolvendo-se durante os três anos iniciais do narcisismo, da infância, nas sociedades moderno-ocidentais.     
          Também há a ambiguidade do lugar da linguagem, que se é "o" Outro essencialmente conforme o esquema L de Lacan, temos a situação da criança, o sujeito infantil que é solicitado pela fala do seu meio, como pela linguagem mesma, a também ele poder falar. Mas assim o Outro, que faz da subjetividade o que ela é, o que se desdobra ou vem a ser habitado por um "eu", sendo linguagem, seu lugar só é estruturado topicamente em função do Sujeito ser esse ser humano virtualmente falante. Não há linguagem sem pragmática, e esta é o imaginário egoico, portanto o lugar do Outro factualmente é o próprio "eu". 
          Uma ambiguidade que se pode acrescentar as já vistas, é a de imago e imagem. Lacan começa conceituando duas coisas bem irredutíveis, porquanto a imago é o termo ambivalente do complexo, assim quando o complexo é sublimado a imago se torna inconsciente no sentido de não representável. Mas se o que subsiste depois, é como o termo já definido, que deixou portanto de ser ambivalente, o que deveria ser suscitado ao cabo da sucessão dos complexos até a sublimação da imago paterna é a faculdade do raciocínio, independente de imagens. Contudo, Lacan insiste na pregnância da imago, em correlação com a formação dos "objeto a", na captação das imagens, e na imagem como - ao que parece - o correlato da representação objetiva. O trânsito da imago à imagem não ficou bem esclarecido.
           Mas quanto ao tema do matriarcado enquanto uma ciência do desenvolvimento, se recupera na linha lacaniana do pensamento da mulher. A mulher é o termo pelo qual não se consubstancia o conceito, é a ausência de idealização. Isso é o que Lacan pensava antes, do matriarcado - assim ele não elidiu a condição do pré-lógico. Em "Um discurso que não fosse semblante", a relação mulher-pré-lógico-matriarcado é até explícita. Em todo caso, a "mulher" em Lacan não é o mesmo que "alma", a não ser como o mesmo que o efeito do desejo masculino. Mas assim a masculinidade seria homossexual ("Mais, ainda", p. 114), isto é, não visaria a um outro enquanto sujeito do desejo mesmo sendo heterossexual no sentido comum do termo. 
       A base material do desejo enquanto essencialmente masculino é pois o gozo, sendo o orgasmo masculino ejaculação, do mesmo modo que o pênis, "o" imaginável em si. A mulher goza/não-goza por isso que a vagina é inimaginável e o gozo feminino também. O desejo feminino é então ser objeto do gozo/desejo real, masculino. Só o homem deseja e é desejado, como na Grécia dórico-aristocrática era explícito num homossexualismo sui generis porque nele o efeminado é quem gosta do feminino, isto é, o homem que tem mais prazer com a mulher do que com o rapaz, Assim o machismo que abomina  a homossexualidade tem o mesmo fundamento homossexual, pois se trata de querer dominar, admirar só o viril. 
         A propósito seria oportuno informar que esse homossexualismo deveria ser sempre conspícuo onde o complexo aristocrático fosse dominante, como é o caso do Brasil, e de fato não há hoje em dia muitos outros países onde o machismo é tão pronunciado, num dos piores, ridículos e fascistas business de mídia-propaganda do mundo.

        Assim enquanto a questão do desejo para todo pensamento teórico são na linha inaugurada por Lacan é se a mulher goza, uma vez que o que visamos é obviamente como superar a neurose inconsciente que cerca o desejo homossexual hominizado pelo superego/instinto destrutivo totalitário.
          Ao que parece ser a problematização lacaniana do inconsciente como a instância impossível de realizar a duplicidade real dos gêneros, a alteridade da "mulher" relativamente ao masculino sujeito/objeto do gozo que porém enquanto pré-genital não é sexual na acepção corrente desse termo. Mas quando assim se torna, é o desejo que nasce, em vez de algo que o vulgo considera "sexo".
         O desejo, pois, não se articula ao eu antes do complexo de Édipo, porém como a rivalidade do menino com o pai ou a fantasia freudiana de Totem e Tabu - o contrário de qualquer tese do matriarcado originário. O espaço/olho "pendurado" no corpo, a voz que é função do "a" (ou do "eu"), complementam em Lacan os objetos oral, anal e fálico, enquanto funções do "eu". A "mulher" se torna a reserva do que se furta ao desejo, paradoxalmente, mas assim tampouco é ela o "outro", este que é o superego e/ou o pai, inconsciente, linguagem, lei, absoluto, ideal. Como se resolve a aporia lacaniana?
         Até aqui devemos ter mais claramente o que podemos considerar apurado em Lacan e Marcuse. O percurso classificatório em Lacan realmente se mostra infixado e mutável. Os "complexos familiares" estipulam o matriarcado, o patriarcado e o que deste deriva como trajetória possível da civilização na qual se inclui o progresso da ciência. Aí os judeus são os heróis do patriarcado, a palestina é a área referencial do seu oposto, a guerra santa por domínio territorial do judaísmo antigo está justificada. Não obstante, ao contrário do que Lacan induziria a crer, nada foi tão um denominador comum na Antiguidade como a guerra "santa" mas pelo território, ao menos até que esse movimento de dominação crescente, aportando à grandeza da Persia, tivesse cruzado o Hálix para achar o intransponível óbice grego. O que haveia mais constante na antiguidade, do que a guerra por domínio territorial movida por nacionalidades cuja identidade era dada pela homogeneidade religiosa? 
         O que singulariza Israel poderia ser apenas um regime destoante da monarquia do rei divino, com a legitimação do poder absoluto provindo do sacerdócio, o levirato, o que induziu Nietzsche, na "Genalogia da Moral", a delirar que se tratou assim da invenção do Direito na humanidade, o que ele abominava como suposta justiça do mais fraco, quando a seu ver e ao de Spencer - descontando o utilitarismo - a sobrevivência e sobretudo a evolução da espécie dependia da vitória do mais forte. É um tema de pesquisa interessante entender como Nietzsche e os nietzchianos fazem para esquecer que o tribunal de direitos civis - portanto, a laicização da legalidade - nasceu ou se institucionalizou formalmente na Grécia, que inversamente, na classificação de Nietzsche, assim como Roma, era o nobre e heróico forte oposto exato de Israel. E que a legalidade civil e a democracia não foram a razão profunda da metafísica como alguma racionalização dos fracos na ideia da justiça universal, mas sim que a metafísica é a obra da nobreza grega espartano-pérsica, contra a democracia ateniense e a legalidade civil - e, também,  como esse absurdo tornou-se um dos fundamentos da história das ideias no século XX. O próprio Lacan, nos escritos, invectiva Hegel para fazer, como Nietzsche, dos senhores o referencial ativo do inconsciente, inversamente aos escravos laborantes da emancipação.
           Está nítido que a pressão por fornecer uma classificação sócio-desenvolvimentista que privilegiasse o "ocidente" capitalístico europeu já aristocrático-prussianizado na rota do neocolonialismo afro-asiático, tende a ser a explicação mais coerente para o despropósito nietzshiano. Mas como vimos, Lacan interessava-se então, inversamente, se bem que na mesma linha de motivação, por enunciar uma fórmula de todo o patriarcado por igual.
           Ora, se em "os complexos familiares" (1938) os judeus eram os heróis do patriarcado e a Palestina o seu oposto, no Seminário intitulado "A Angústia" (1963) os judeus são atribuídos como obsessivos que teriam capturado a voz de Deus pelo chofar, o instrumento sonoro do seu ritual, Moisés, suposto, ao invés do destruidor dos ídolos, o parricida originário contra o pai originário (op. cit. p. 276 e segs.) superado  pela manipulação do instrumento. 
             A castração como angústia da fase fálica é ao mesmo tempo que aquilo que aparece no final da análise psicoterapêutica, o recorrente do desejo na medida que o esvaescimento, a "afânise" do falo que ocorre naquela fase, é a condição da relação sexual efetiva, na penetração - que porém Lacan não considera ter qualquer correlato psíquico outro que esta. Ou seja, a realidade física da penetração é irredutível à realidade psíquica do ato sexual, de modo que, quanto ao sexo como é vivenciado, não significa para Lacan penetração.
           A castração nessa acepção psicanalítica de ser a tomada de consciência da realidade do sexo feminino, como angústia da fase fálica, é ao mesmo tempo aquilo que aparece no fim da análise, o recorrente do desejo na medida que o esvaecimento do falo que ocorre naquela fase é a condição da relação sexual efetiva na assim designada penetração. Na fase fálica ou complexo de castração que se segue ao Édipo e precipita a fase genital, o orgasmo se torna o equivalente da angústia, o desejo se equipara ao instinto destrutivo. O obsessivo, fixado na fase fálica, que se identifica às próprias excreções anais, seria o referencial da questão da angústia na sua relação ao desejo que assim ao que parece é o que o obsessivo ironicamente nega.
            Aí o "primitivo" passa a ser considerado já precedido pela segregação do ego, ou o que o marca, relativamente ao Sujeito, a subjetividade generalizada. Assim como Strauss supõe a estrutura como combinatória uma razão que precede todas as atuações singulares étnicas como casos particulares dela. 
             Em "O avesso da psicanálise" (1969), inversamente ao que vimos até aí como os judeus heróis contra os palestinos matrilineares, os judeus são vituperados por seu Deus reprimir as divindades palestinas liberadoras da prostituição - exatamente o contrário, pois,  do que vimos em "Os complexos familiares". Na vituperação, Lacan passa à exaltação de Baal, como deus da prostituição, esquecendo-se que era também dos sacrifícios humanos. Assim também o contrário de "Um discurso que não fosse semblante" (1971), onde a "mulher" ou primitivo é a impossibilidade lógica da atribuição do universal. Aí contudo, o primitivo já não se considera realidade, pois sempre marcado pelo "a" como instância de remessa do desejo ao significante.
            Na mudança relativa ao patriarcado, só podemos ver uma retificação antropológica, não uma transformação que alterasse a cisão do genital como percurso do desejo masculino, ao pré-genital não-aristotélico, pré-lógico. O relativismo torna ao limite, pois o sujeito epistêmico é o  telos da estruturação que se realiza por meio de suas fases como níveis de suas camadas. Em Marcuse, a questão do princípio de realidade como variável em vez de limite, parece-me melhor colocada. Mas o problema é que a abrangência desejável só seria esclarecida se não se cingisse à questão do destino do desejo: o saber despótico, miragem ideológica, em Lacan; a organização do trabalho em função do progresso técnico a partir da origem na escassez, conforme Marcuse.
          Nestes dois exemplos, o conhecimento continua sendo a função ascendente da libertação, de modo que na origem que eles idealizam a liberdade política não era presente ou possível, conforme a dogmática da homogeneização classificatória antropológica, ou, se era, estava marcada pelo destino que teve, pois sem conhecimento psicanalítico não haveria conjuração possível do mal.
       Se retomarmos a questão estrutural em Levi Strauss, veremos que o papel do pré-concebido na ciência quanto à classificação evolutiva das sociedades, redobra o assim atribuído pré-existente na consciência, ou melhor, "inconsciente". Este se torna o repositório dos mitos da cultura, distribuídos conforme fazem como lote das sociedades. A cisão que Levi Strauss demarca entre mitos da tradição coletiva e "situações" vividas rememoradas pessoalmente, define a seu ver a diferença entre o que o xamã e o psicanalista promovem em termos da "cristalização afetiva" na mente daquele a quem visam curar com suas respectivas técnicas. A cristalização que cura se processa na forma (moule) de uma "estrutura pré-existente", conforme a referência de José Guilherme Merquior em "A estética de Levi-Strauss" (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975, p. 45).
        O elemento mínimo estrutural parece ser pois o enunciado circular do haver do significado como o segredo oculto por trás da profusão incoercível dos significantes. Mas que há o significado é apenas a estrutura – ou o jogo, na terminologia do pós-estruturalismo - que o implica, não o mero ser das coisas, sendo a estrutura o inato por desenvolver na mente como função do simbólico, do mito à ciência cujo ápice é essa espécie estruturalista de criticismo pelo qual não há fundamento da ciência além da sua história pregressa ou mito (inconsciente) como elemento mínimo ou promessa do significado (cons-ciência).
          O ápice desenvolvimentista da inteligência é pois a antropologia estrutural que só pode se constituir numa mito-lógica. Na trajetória das contradições de Lacan a propósito dos judeus, afinal Lacan atribui ao cristianismo o papel histórico da transformação científica do mundo. É o deus não falseador de Descartes que introduz a possibilidade da ciência como o elemento mínimo da certitude. Mas assim Lacan não considera o que parece decisivo no cenário do século cartesiano, não obstante aí ter sido algo anômalo. A introdução da cisão entre a ciência e a religião, como na aposta puramente humanística de Pascal, tendo a ciência nele já a abrangência probabilística e cibernética tão avessa ao racionalismo clássico. 
             É preciso ler hoje a Pascal na abrangência desse imperativo inusitado, a evidenciação da maior irredutibilidade possível entre  a máquina que como o objeto da ciência é impessoal puramente mecanico, e  Deus que salva numa relação pessoal conosco.
         Mas se Lacan interpretou como cartesiano o século dezessete, como se apenas uma propedêutica à ciência do século XIX, a história das ideias do século XX vem a se revelar como a série de teorias que competiram pelo título de melhor preencher a brecha, restaurando a continuidade do Cogito mesmo na decorrência da cisão mais radical desde o postulado do Inconsciente. 
            Hoje seria importante interpretar o sintoma do revival do platonismo na epistemologia do paradigma do caos, assim como na concepção de Lacan, por exemplo, como um novo modelo da forma. O sintoma é pois da vontade de unidade que perfaz a geo-ego-logia ocidental, pelo que aquilo que precisamos recuperar é a recalcada ruptura da tradição clássica, como a descoberta da heterogeneidade que vem impulsionando o pensamento desde a descoberta do continente americano.
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          Assim comprova-se alteração inexplicada no programa blogspot contrariamente a minha opção como usuária e o direito do público. Como intromissões de vários tipos já foram constatadas em blogs, inclusive palavras chulas acrescentadas, e como alterações mais grosseiras também se verificam off line, esperando que a polícia identificasse o invasor conforme instruções de sites na internet, comuniquei a cyberdelegacia que a conta está intrusada, porém não tendo sido feito registro da queixa alegando-se devermos mover processo particular. Nenhuma autorização me foi pedida ou por mim concedida para acesso de qualquer outra pessoa ao uso ou administração de minha conta blogspot ou computador pessoal. 
           Em todo caso, comunico ao público falsificação do documento privado quanto aos quesitos reportados, e sobre a integridade do conteúdo de textos na internet como vemos depende de monitoramento dos autores, pois vândalos não identificados ou dispositivos aversivos do programa computacional os alteram. 
             
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